postado em 23/02/2010 07:00
Solidariedade, liberdade e segurança. A tríade que supostamente caracteriza a Organização do Tratado do Atlântico Norte (Otan) foi manchada ontem por mais um erro da aliança militar no Afeganistão. O secretário-geral Anders Fogh Rasmussen não escondeu a vergonha, divulgou nota lacônica no site da entidade, mas foi incapaz de explicar o que ocorreu em uma estrada do distrito de Char Cheno, na província de Uruzgan (sul). ;Eu falei com o presidente (Hamid) Karzai para expressar, por meio dele, minhas mais profundas condolências ao povo afegão pela trágica perda de vidas inocentes em recentes operações militares;, afirmou.O comboio de três veículos que seguia rumo a Kandahar teve a viagem interrompida ao ser atingido por bombas lançadas de caças. Pelo menos 27 civis morreram, incluindo quatro mulheres e uma criança, e 14 ficaram feridos ; alguns foram transportados para Camp Holland, base militar holandesa situada perto da cidade de Tarin Kowt. ;A Otan está no Afeganistão para proteger o povo afegão, e continuaremos a fazer todos os esforços para reduzir as baixas civis ao mínimo absoluto;, acrescenta o comunicado de Rasmussen.
Não é o que pensa Karim Yar Bahaduri, um estudante universitário de 20 anos que mora em Cabul. ;Nós realmente não sentimos que eles vieram aqui para nos ajudar. Vieram para nos matar;, desabafou ao Correio, pela internet. Ele reclama que a cada suposto ataque contra o Talibã, crianças e mulheres morrem. ;Isso já aconteceu por aqui várias vezes. Há poucos dias, ocorreu em Kunduz, mas também em Jalalabad e em vários outros locais;, comenta.
O Comando Militar dos EUA precipitou-se em divulgar um comunicado duvidoso sobre o incidente. ;Ontem (domingo), um grupo de supostos insurgentes, que provavelmente se dirigiam para atacar o acampamento conjunto da Isaf (Força Internacional de Assistência à Segurança) e das tropas afegãs, viu-se envolvido em um bombardeio aéreo que produziu alguns mortos e feridos;, informou. Quando forças terrestres alcançaram o local, depararam-se com os corpos de crianças e de mulheres e constataram o engano. Por sua vez, o Conselho de Ministros do Afeganistão, presidido por Karzai, considerou o incidente ;injustificável; e um ;grande obstáculo; na luta antiterrorismo.
;Foi um acidente trágico;, disse o norte-americano Daniel Hamilton, diretor executivo do Center for Transatlantic Relations (Centro para Relações Transatlânticas, de Washington) e autor de Alliance reborn: An Atlantic compact for the 21st century (Renascimento da aliança: um compacto do Atlântico para o século 21). Por telefone, o especialista em Otan explicou que haverá um grande impacto sobre a população afegã. ;O efeito imediato é que esse bombardeio dificultará ainda mais os esforços da Otan em ganhar o povo do Afeganistão;, admitiu. ;Ao anunciar sua estratégia de ganhar os corações, McChrystal exortou os outros comandantes da Otan a evitar baixas civis;, acrescentou.
Para ele, o novo incidente danificou a credibilidade dessa estratégia. ;Isso não ajudará nas relações com o governo de Karzai, é óbvio;, garantiu. Hamilton lembrou que o governo do primeiro-ministro holandês, Jan Peter Balkenende, caiu por se envolver no Afeganistão. A morte de civis também pode levar outros países a reconsiderarem o cronograma de retirada das tropas ; a expectativa é de que a Otan fique no país até o inverno de 2011.
Ainda de acordo com Hamilton, os bombardeios da Otan usam aparato tecnológico de alta precisão, mas dependem de operadores humanos. ;O tipo de conflito no Afeganistão não envolve um campo de batalha. O inimigo está disperso em centros populacionais;, explicou. ;Isso cria dificuldades para ataques de precisão e sempre existe o risco de baixas civis.;
Atentado suicida
A leste, na província de Nangarhar, um extremista suicida detonou os explosivos que levava consigo durante o encontro entre líderes tribais e autoridades do governo que haviam acabado de retornar do exílio. Entre os 14 mortos, está Haji Zaman Ghamsharik, um ex-comandante mujahedin e chefe provincial do Ministério dos Refugiados. Zaman era suspeito de ajudar militantes da rede Al-Qaeda a fugirem das montanhas de Tora Bora, durante a invasão anglo-americana ao Afeganistão, em outubro de 2001. Mais recentemente, era conhecido por ter trazido relativa estabilidade a Nangarhar, em uma região considerada o bastião do Talibã.
Afegão declara-se culpado de complô em Nova York
O imigrante afegão Najibullah Zazi declarou-se culpado ontem, ante um tribunal federal norte-americano, de ligação com a rede terrorista Al-Qaeda e de planejar um atentado a bomba em Nova York. O acusado, de 24 anos, se disse culpado de ;complô com o objetivo de utilizar armas de destruição em massa;, de ;conspiração com o objetivo de cometer assassinatos em um país estrangeiro; e de ;apoio material à rede Al-Qaeda;. A informação foi divulgada por um jornalista da agência de notícias France-Presse, que assistiu à audiência no tribunal do Brooklin. Najibullah Zazi afirmou que o alvo dos ataques seria principalmente ;o metrô de Nova York;.
; Análise da notícia
Efeitos perigosos
Crianças e mulheres morrem em mais um ;erro; da Organização do Tratado do Atlântico Norte (Otan). Um novo engano daqueles que se julgam os paladinos da liberdade, os mensageiros da democracia. Livraram a cara do Afeganistão do horror do Talibã no poder e,agora, espalham o terror de seus bombardeios contra civis. ;Sentimos muito pela trágica perda de vidas inocentes; e ;faremos de tudo para reconquistar a confiança do povo afegão;. As lamúrias e justificativas do general Stanley McChrystal, comandante das forças norte-americanas no Iraque e no Afeganistão, não bastam. Cada ataque mal planejado tem um efeito colateral perigoso: o ódio contra o Ocidente aumenta e torna cada vez mais improvável a pacificação de um país considerado covil de extremistas islâmicos.
Corações e mentes. Muitos dos afegãos com quem já conversei acreditam que as forças aliadas só conseguirão estabilizar o país se conquistarem isso dos afegãos. Corpos e pedidos de desculpas apenas legitimarão as ações da milícia fundamentalista Talibã no país. Os mujahedine (guerrilheiros islâmicos) passariam a ser vistos exclusivamente como a força capaz de expulsar os invasores e impor-lhes uma derrota acachapante, como a sofrida pelos soviéticos, em 15 de fevereiro de 1989. O bombardeio em Uruzgan mostra que falta à Otan cuidado com a população civil.
Erros acontecem, é claro. Mas foi o sexto engano fatal nas últimas duas semanas ; o número de mortos passou de 50. Os contínuos ataques contra inocentes podem minar inclusive a credibilidade da aliança atlântica junto à comunidade internacional. E isso pode custar muito caro no futuro. (RC)
Eu acho...
;Durante a Guerra Fria, a Otan jamais disparou um tiro sequer. Com o fim desse período, isso começou a mudar. Se olharmos para o engajamento da Otan na Guerra dos Bálcãs, na década de 1990, veremos que houve incidentes similares durante o bombardeio contra a Sérvia. Isso é parte da tática da Otan. Infelizmente, não se trata mais de uma batalha entre países, mas de um adversário presente entre a população civil;
Daniel Hamilton, diretor executivo do Center for Transatlantic Relations (Centro para Relações Transatlânticas), com sede em Washington.