postado em 12/06/2010 08:00
À frente dele, um imenso tapete branco e amarelo ; as cores das vestes dos 15 mil sacerdotes, freiras e religiosos que lotaram a Praça de São Pedro, na Cidade do Vaticano. Era a ocasião perfeita para que um tabu na Igreja Católica fosse exposto mais uma vez. O papa Bento XVI não perdeu a oportunidade. Em uma homilia histórica, no marco do encerramento do Ano Sacerdotal, ele pediu clemência pelos escândalos sexuais que abalaram a instituição e jurou fazer o possível para impedir que padres abusem de crianças. ;Nós imploramos insistentemente perdão a Deus e a todas as pessoas afetadas, e prometemos fazer todo o possível para assegurar que esse tipo de abuso nunca mais possa acontecer;, afirmou. Foi a primeira vez que o sumo pontífice pediu perdão pela crise no coração da Igreja e em uma ocasião voltada para os padres.Bento XVI culpou o demônio pelo escândalo. Segundo ele, o escândalo surgiu em pleno Ano Sacerdotal, ;porque o inimigo (Satanás) quer ver Deus expulso do mundo;. ;Aconteceu que, neste ano pelo sacramento do sacerdócio, os pecados de padres vieram à tona ; particularmente o abuso dos menores;, disse o papa. Mais uma vez, o líder católico não mencionou se tomará ações específicas para lidar com o problema, apesar de ter abordado o tema da vocação. ;Ao admitir homens ao ministério, faremos tudo o que pudermos para pesar a autenticidade de sua vocação e todos os esforços para acompanhar os padres ao longo de sua jornada;, acrescentou.
O padre norte-americano Joseph Fessio, ex-aluno de Bento XVI (então Joseph Ratzinger), afirmou ao Correio que a vocação sacerdotal tem se modificado na última década, em comparação com os anos 1970 e 1980. ;Roma tem apenas controle indireto sobre os procedimentos de rotina nos seminários, incluindo a seleção de candidatos. A Santa Sé exerce o poder de indicar bispos. É aí que mora a grande responsabilidade e a culpa;, comentou, por e-mail. Ele lembra que bispos aprovaram as políticas de admissão de candidatos ;sexualmente problemáticos; e de ;professores destoantes do ensino da moral católica;. ;Essa é a raiz do problema;, acredita Fessio.
Teologia e moral
Por sua vez, o reverendo irlandês Vincent Twomey ; também ex-aluno de doutorado de Ratzinger na Universidade de Regensburg (Alemanha) ; assegurou que a Santa Sé tem prestado atenção especial à seleção de padres. Segundo ele, o tema é mais complexo e envolve um alinhamento da teologia moral aplicada nos seminários com o ensinamento moral da Igreja Católica. ;Na maior parte dos seminários, o tipo de teologia ensinada é proporcionalista, uma forma de relativismo moral;, explica Twomey. ;Isso contribuiu enormemente para o aumento da incidência de abusos sexuais nas décadas de 1970 e 1980, por negar que qualquer ação é intrinsecamente errada e encorajar o laxismo moral;, opina.
Para o vaticanista norte-americano Vincent Lapomarda, professor de teologia no College of Holy Cross (em Worcester, Massachusetts), ;uma vocação genuína é o resultado do trabalho da graça de Deus;. ;O impacto do escândalo na Igreja é traumático;, reconhece. Ele cita como exemplo a Alemanha, onde muitos católicos se afastaram totalmente da religião. ;A crise abalou a fé, por causa da traição de confiança. Uma vez que isso ocorre, é muito difícil reverter a situação;, diz Lapomarda.
O pedido de perdão de Bento XVI não comove as vítimas de religiosos pedófilos (leia a entrevista). ;A cada dia, o papa se recusa a tomar ações decisivas para proteger as crianças, e isso é de cortar o coração. A cada hora, ele tenta minimizar os abusos e acobertar a crise, usando termos como ;escândalo secundário;. Ele enterra a Igreja em um buraco já cavernoso e deprimente;, lamenta o norte-americano David Clohessy, diretor nacional da Rede de Sobreviventes de Abusados por Padres (Snap, pela sigla em inglês). Clohessy foi abusado por um sacerdote que ainda violentou três de seus irmãos ; um deles tornou-se padre pedófilo. ;Eu lutei contra minha fé, contra a raiva, a depressão, a insônia, os pesadelos e a dificuldade em lidar com figuras autoritárias;, conta ao Correio, por e-mail.
Relatos de uma vítima de padre pedófilo
David Clohessy
"Eu fui abusado por quatro anos entre o fim da década de 1960 e 1970 por um padre que também violentou três de meus irmãos. Um deles tornou-se padre e molestou garotos. Meu abuso ocorreu dezenas de vezes, quase sempre durante viagens. Nós dormíamos em hotéis e campings e acordava com ele sobre mim. Depois desses abusos, lutei contra minha fé, contra sentimentos de raiva, depressão, insônia, pesadelos e a dificuldade em lidar com figuras autoritárias. Graças a muita terapia e grupos de apoio, consegui manter um casamento de 20 anos e criar dois filhos, hoje adolescentes.
A crise na Igreja segue sem solução por duas razões: a hierarquia da Igreja e o resto de nós. A hierarquia simplesmente se recusa a tomar uma ação. Tem havido pouca ação importante por parte das autoridades da Igreja, e tudo o que elas têm sido é relações públicas. Os bispos dos Estados Unidos defendem que cada diocese deve ter uma pessoa para quem reportar os abusos, um ;código de conduta; assinado pelos funcionários e um plano de comunicação formal que privilegia a abertura.
Alguma mãe em algum lugar manteria silêncio sobre o abuso contra sua filha porque não pôde encontrar uma pessoa na Igreja a quem reportar?
Existe algum padre molestador de crianças que consultou seu código de conduta na diocese, não encontrou provisão específica proibindo-o e, então, molestou crianças? Essas medidas são fracas, vagas e apenas esporadicamente reforçadas.
As palavras de Bento XVI, ao implorar por perdão, são decepcionantes, pois apenas são palavras... Palavras não protegem crianças, ações as protegem. Mais desculpas, desculpas mais claras, desculpas mais fortes não tornam uma criança mais segura. O papa perdeu uma chance perfeita para anunciar fortes medidas que resguardem as crianças; para exigir que milhares de padres chamem a polícia ao saberem de crimes sexuais; para agradecer aos bravos e poucos padres que encontraram a força, a coragem e a compaixão para expor seus colegas e supervisores predadores e corruptos. Cada dia que o papa se recusa a tomar uma ação decisiva para proteger crianças é de cortar o coração. Cada vez que ele tenta minimizar os abusos e acobertar a crise, ao usar frases como "escândalo secundário", causa danos a vítimas, crianças e muitos católicos.
O problema real não é o padre jovem que se torna molestador depois. São os atuais bispos, cúmplices agora. Predadores não podem ser contidos por punições -- eles são doentes e compulsivos. Mas outros membros da Igreja -- incluindo os bispos -- podem ser detidos por penalidades. É trágico que o papa se recuse a impor punições a funcionários da Igreja que ignorem ou aceitem os crimes de pedofilia"
David Clohessy é diretor nacional do grupo de apoio norte-americano Survivor;s Network of those Abused by Priests (SNAP)