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Entrevista - Ersin Erçin: "Israel cometeu uma grave violação"

Embaixador da Turquia diz que ataque à flotilha foi "execução", exige desculpas e alerta para dano às relações diplomáticas

postado em 10/07/2010 07:00
A indignação está estampada em várias das palavras de Ersin Erçin, embaixador da Turquia no Brasil desde setembro do ano passado. Em entrevista ao Correio, o diplomata de 52 anos denunciou o ataque israelense à flotilha humanitária Liberdade, em 31 de maio passado, como uma ;violação sem precedentes da lei internacional;.

;Foi o erro mais grave já cometido contra a Turquia, desde a fundação do Estado de Israel;, alertou Erçin, que admitiu a irritação do governo de Ancara e avisou que nenhum pretexto é convincente.

Segundo ele, os comandos israelenses escolheram o navio MV Marmara, de bandeira turco, para ser alvo da operação. ;Mais de 30 balas foram retiradas das cabeças dos passageiros, após serem disparadas a uma curta distância;, afirmou o embaixador. ;Foi uma execução;, acrescentou. O representante do governo turco refuta a tese de autodefesa, uma alegação do primeiro-ministro israelense, Benjamin Netanyahu.

E lembra que a ofensiva ocorreu em mar aberto, em águas internacionais. Erçin adverte o Estado judaico de que as relações entre os dois vizinhos estão à beira de um colapso e lembra que Ancara tem sido o principal aliado de Israel no Oriente Médio e o único país muçulmano a reconhecer sua independência. ;A Turquia é a garantia da eterna sobrevivência de Israel na região;, disse.

O governo de Israel acusou a organização não governamental IHH de manter laços com terroristas, incluindo a rede Al-Qaeda;
Em primeiro lugar, eu gostaria de enfatizar que esse evento é uma violação sem precedentes da lei internacional. Eles (israelenses) estão se escondendo por detrás dessas acusações, ao afirmar que os passageiros da flotilha tinham conexão com a Al-Qaeda ou mesmo com o Hamas. Essa não é a questão. A questão é que seis navios, compostos por 600 pessoas, carregando ajuda para o povo palestino, foram atacados em águas internacionais. Todas essas embarcações eram de civis. Mais de 30 balas foram retiradas das cabeças dos passageiros, após serem disparadas a uma curta distância. O incidente ocorreu a 72 milhas náuticas (133km) da costa ; de acordo com o direito internacional, em mar aberto, onde todos os navios internacionais podem navegar livremente. A área de bloqueio ficava 64 milhas náuticas (118km) do local do incidente. A autodefesa aqui não é algo aceitável. Isso é uma distorção grosseira dos fatos. A Carta das Nações Unidas, em seu artigo 51, define a autodefesa. Segundo o documento, a autodefesa é legal se um ataque armado ocorre contra um membro das Nações Unidas. Não foi o caso. Todos eram civis e, apesar de alegações das autoridades israelenses, não havia uma única arma ; nem sequer uma pistola pequena ; dentro dos navios. Havia outros meios de parar as embarcações, e Israel sabia bem disso. Mas eles escolheram, conforme a imprensa internacional cobriu, atacar civis com armamentos pesados, com metralhadoras. Eles foram mortos. Podemos chamar isso de tudo, mas não de autodefesa. Houve um ataque e foi fora da costa.

Como o senhor vê as alegações de que extremistas teriam se infiltrado na flotilha?

Esse, é claro, é um dos pretextos usados pelo governo israelense para se defender. Eles não têm qualquer evidência. Se tivessem, deveriam ter parado o navio e levado as pessoas, por meios pacíficos. Há várias formas de se fazer isso. Havia 600 pessoas a bordo, de 34 países. Uma das pessoas assassinadas era dos Estados Unidos. De cada um dos 34 países, havia pelo menos um ativista. Eles selecionaram os ativistas? Não! Começaram a atirar em todos no navio de bandeira turca. E eles escolheram o navio de bandeira turca. Havia outros cinco navios. Eles escolheram o nosso propositadamente. Pelo menos 144 países condenaram ou criticaram o ataque. Não havia armas nem militantes no navio. Foi o erro mais grave já cometido contra a Turquia, desde a fundação do Estado de Israel. Isso nos irritou. Nenhum pretexto é convincente. Se eles são tão inocentes e se usaram o direito de autodefesa ; e isso não é o caso ;, então deveriam aceitar a comissão internacional proposta pela ONU. Civis viajando em mar aberto foram atacados e assassinados. Poderia haver algo pior que isso?

As autoridades israelenses afirmam que os tripulantes do MV Mavi Marmara pediram aos comandos que retornassem a Auschwitz. Segundo elas, o navio não teria obedecido ordens de parar;

Isso não é verdade, não é verdade. Eles não falaram com a tripulação. Você deve ter visto pela TV que eles vieram por meio de helicópteros de ataque e começaram a atirar ao redor. Aqueles caras, pegos de surpresa, se defenderam com o que puderam encontrar. Eles não tinham armas. Naquele momento, a flotilha não estava viajando em direção à área de bloqueio. O navio carregava material de construção, donativos, comida, utensílios de primeiros socorros, equipamento médico, remédios, materiais escolares e brinquedos. Não havia armamentos. Não é verdade que o navio havia sido alertado.

A ;revelação; de que havia armas na flotilha teria sido uma tentativa de justificar o ataque?Absolutamente. Essa foi a única desculpa. Um dos porta-vozes das Forças de Defesa de Israel alegou terem encontrado armas pesadas levadas a Gaza para o Hamas. Isso não é verdade. Tudo era puramente humanitário. Eles levaram todos os navios a Israel. Alguma arma foi exibida? Não! Porque não existiam. Isso não pode ser autodefesa, de acordo com o direito internacional. Foi um ataque a civis desarmados em águas internacionais. Assassinatos nunca são aceitáveis! A Turquia é um dos poderes regionais. Mantém uma excelente relação com Israel. Estamos extremamente desapontados. A Turquia desempenha um importante papel para o estabelecimento da paz no Oriente Médio. Tem mediado, indiretamente, não apenas as conversações dos israelenses com os palestinos, mas também com os sírios. Israel cometeu uma grave violação da lei internacional. Se eles respeitam o direito internacional, devem aceitar que uma comissão internacional seja montada logo para investigar o incidente. Após cometer um crime, você pode julgar a si mesmo? Eles criaram uma comissão que foi criticada inclusive pelo jornal israelense Haaretz por não ter autoridade completa para apurar esse incidente. As relações entre turcos e israelenses têm sido muito boas. A Turquia foi um dos primeiros países muçulmanos a reconhecer a independência do Estado de Israel, em 1948. A Turquia era um presente para Israel numa região crítica como aquela.

A Turquia é uma espécie de fiel da balança para Israel, em uma região cercada de países árabes e muçulmanos?
Definitivamente. As relações são importantes para os turcos e são ainda mais importantes para Israel. A maior parte dos Estados árabes não têm relações ou mantêm relações muito restritas com Israel. Alguns deles não reconhecem o Estado de Israel.

Israel corre o risco de perder um grande aliado?
Isso depende da decisão deles. Estamos à beira de um rompimento. Ao ordenarem que seus soldados atacassem o navio, eles violaram gravemente o direito internacional. Esse tipo de crime não pode ficar impune. O que esperamos já foi dito claramente por nosso primeiro-ministro e por nosso chanceler. Eles (israelenses) devem se desculpar publicamente e devem indenizar as famílias das vítimas, algumas delas muito jovens. A garota turco-americana tinha cinco balas em sua cabeça. Você pode esquecer algo assim? Eles têm que se desculpar. Foi uma execução. O que essa garota queria era levar alguma comida e brinquedos ao povo da Faixa de Gaza, não ao Hamas. Para o embaixador Giora Becher, os temas Hamas e ataque à flotilha estão misturados. São temas completamente distintos. Se Israel é importante para nós, a Turquia é muito mais importante para Israel. Se eles consideram a Turquia um bom parceiro estratégico na região, devem fazer o que for exigido: aceitar que uma comissão internacional investigue o assunto. Isso não é justo? Eles também devem compensar as famílias turcas para aliviar seu luto profundo por nove pessoas que jamais retornarão.

Mas o senhor acredita num corte absoluto das relações diplomáticas?
A diplomacia é uma arte. No passado, vimos mudanças em posições muito difíceis, sob certas circunstâncias. Não acreditamos que Israel desejaria perder a Turquia. A opinião pública turca está tão irritada, tão nervosa que, se eles não quiserem perder a Turquia, deverão fazer o necessário. Os membros da coalizão de extrema-direita, influenciados pela opinião pública, poderiam aceitar um rompimento absoluto. Mas acreditamos que o bom senso prevalecerá em Israel. No Oriente Médio, não existe um único país que possa substituir a Turquia, para Israel. A Turquia é a garantia da eterna sobrevivência de Israel na região. Eu espero que esse período crítico passe.

Por que Netanyahu tem adotado uma postura de desafio em relação ao incidente com a flotilha?
Netanyahu é uma pessoa muito conhecida por suas visões e por suas políticas relacionadas ao processo de paz no Oriente Médio. Penso que ele acredite que aceitar a derrota ou admitir uma decisão errada seja um passo atrás. Isso poderia ser considerado uma fraqueza no tipo de política que ele persegue. Algumas vezes, derrotas pessoais deveriam ser ignoradas ou esquecidas, pelo bem da segurança da nação e pelos interesses maiores do país. O interesse político de Israel encontra-se em ter boas relações com a Turquia. Temos 52 acordos, incluindo militares, com Israel. Todos esses ganhos não podem ser desperdiçados por preocupações pessoais.

Como o senhor vê a Comissão Turkel, criada pelo Estado de Israel?

Essa comissão foi dirigida para ganhar tempo, mostrando ao mundo que eles estão fazendo algo. Ninguém acredita que uma comissão israelense objetivamente investigará esse assunto.

O que o governo turco pode fazer em relação a isso?
A menos que demandas legítimas sejam cumpridas, a Turquia vai eventualmente rebaixar as relações diplomáticas ao mínimo. O embaixador da Turquia em Telavive foi sabatinado, convocado e não vai retornar. Os turcos são representados agora por um conselheiro, não por um embaixador.

Como seriam essas ;relações mínimas;?
Temos relações mínimas com a ilha Saint Kitts and Nevis. Nosso embaixador está em Ancara. Não temos relação comercial ou contato político. Sem relações comerciais e militares. Israel estava entre os quatro países que enviavam turistas à Turquia. Todos os anos, milhares de turistas israelenses vinham à Turquia. Sob esse ponto de vista, nenhum turista israelense irá à Turquia, não haverá cooperação militar, o espaço aéreo será fechado a treinamentos de aviões israelenses.

As desculpas do Estado de Israel são algo crucial nesse momento?
São cruciais, porque nosso orgulho nacional foi atacado. Nosso país foi atacado. Depois de ouvir todas as desculpas, essa situação trouxe uma enorme frustração ao povo da Turquia. Nosso governo acredita que desculpas vão curar parcialmente as feridas da opinião pública turca. É moralmente importante. Politicamente, eles devem mostrar que são amigos da Turquia e reafirmar seu compromisso com a importância que conferem à Turquia. Legalmente, eles devem deixar essa comissão internacional ser estabelecida. Houve um grave erro aqui. Até agora, Israel fez o que queria. Mas, agora, cometeram um erro realmente grave. Queremos que eles coloquem as coisas no rumo certo, que coloquem o trem descarrilado em seu caminho. Perder a Turquia não trará qualquer bom resultado para Israel. Acreditamos que as mínimas demandas ; estabelecimento da comissão internacional, as desculpas e a compensação financeira às famílias das vítimas ; devem ser atendidas, sem perda de tempo. Pela paz do mundo e pela estabilidade do Oriente Médio. Temos estado em total solidariedade com Israel, em cooperação militar absoluta. Não temos luxúria em perder isso. Espero que o bom senso de Israel prevaleça logo.

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