Silvio Queiroz
postado em 30/08/2010 08:32
O presidente Barack Obama e o comando militar dos Estados Unidos estão contando as horas para anunciar oficialmente, amanhã, o fim das operações de combate no Iraque. Seguindo o cronograma fixado pela Casa Branca ; para honrar as promessas do então candidato democrata na eleição de 2008 ;, os menos de 50 mil militares americanos que continuarão no país até a conclusão da retirada, no fim de 2011, deverão ocupar-se de treinar o Exército e a polícia locais, cujo efetivo combinado já supera os 500 mil. Os índices de violência caíram substancialmente em relação a 2006 e a 2007, os anos mais críticos desde a invasão, em 2003. A economia se recupera, puxada pela produção de petróleo, e serviços como eletricidade, água e telefonia retomaram os níveis pré-guerra.O cenário descrito nas apreciações oficiais não contempla, no entanto, um elemento crucial que preocupa não apenas os analistas, mas também alguns líderes iraquianos: as tropas norte-americanas estão entregando a uma força de segurança despreparada o controle de um país politicamente invertebrado. Em março, os iraquianos foram às urnas para renovar o Parlamento instituído após a ocupação, mas os resultados finais saíram apenas em maio. Pior: a composição de forças, com um quase empate entre a coalizão laica Iraqiya, do ex-premiê Iyad Allawi, e o bloco xiita Estado de Direito, do premiê Nuri Al-Maliki, impediu até aqui a formação de um novo governo.
;Se me perguntassem sobre a retirada, eu diria aos políticos: o Exército dos EUA precisa ficar até que as nossas tropas estejam plenamente preparadas, em 2020;, disse, sem reservas, o chefe do Estado-Maior iraquiano, general Babakir Zerbari. Pertencente à minoria étnica curda, a quem a invasão norte-americana permitiu trocar a perseguição de Saddam Hussein pelo controle de um governo autônomo no norte do país, o general tem algo que falta aos políticos e militares de Washington: conhece na pele o significado das rixas étnico-religiosas no Iraque. Zerbari sabe que o hiato entre a presença irresistível do poderio americano e a capacitação plena das forças iraquianas representa risco máximo, na ausência de um concerto político sustentável.
Bomba de tempo
;O alcance completo do caos e da devastação trazidos pela invasão americana só poderá ser completamente medido nos próximos muitos anos, em uma apreciação que abarque toda a região e até mesmo implicações de âmbito global;, avalia o libanês Rami Khouri, editor do jornal The Daily Star, de Beirute. Ele acredita que a guerra lançada em 2003 por George W. Bush ;desencadeou novas formas de tensão política e sectária, inclusive o conflito armado;. Khouri se preocupa em especial com um tema agudo também em seu país: as disputas entre muçulmanos sunitas e xiitas, que têm raízes seculares e nas últimas três décadas sofrem a injunção de um novo fator, o regime islâmico do Irã (xiita). ;A linha de demarcação entre sunitas e xiitas se expandiu como uma frente de luta em escala regional, com reverberações em todo o Oriente Médio e parte da Ásia.;
No Iraque, a deposição de Saddam Hussein representou mais do que uma oportunidade para que a maioria xiita reclamasse e ocupasse seu espaço no poder. O vizinho Irã, adversário na amarga guerra de 1980-1988, explorou com habilidade as possibilidades abertas pela democratização e construiu alianças sólidas e amplas em todos os tecidos do corpo político, econômico e social iraquiano. Ao longo de sete anos, Teerã jogou ora no caos, ora na instabilidade ; e, não poucas vezes, em ambos. O resultado é que o regime dos aiatolás dá as cartas na margem ocidental do Tigre, o que deve se aprofundar com a saída dos americanos. ;Eis o problema: sem algum tipo de entendimento entre EUA e Irã, qualquer governo que se forme no Iraque estará irremediavelmente dividido;, analisa Richard Dreyfuss, da publicação esquerdista americana The Nation.
União improvável
Uma aliança entre Allawi e Al-Maliki, os dois vencedores de março, seria a solução ideal para Washington, mas a fórmula esbarra no veto recíproco. Manobrando por fora, Teerã costura uma opção heterodoxa, pela qual promoveria uma coalizão de Allawi, até aqui o político xiita mais confiável para Washington, com o clérigo radical Moqtada Al-Sadr e o clã Al-Hakim, que comandam facções político-militares com bancadas parlamentares suficientes para compor uma maioria. Nessa composição, a chefia do governo ficaria com outro ex-premiê, Adel Abdel Mahdi, que passou anos exilados no Irã, enquanto o favorito da Casa Branca ocuparia a Presidência ; com poder efetivo consideravelmente menor.
Quem é quem
Conheça os principais personagens do tabuleiro político iraquiano:
Nuri Al-Maliki
Primeiro-ministro até a eleição legislativa de março, quando seu partido ficou em segundo lugar, é um político xiita, que tratou de equilibrar-se entre o comando das tropas norte-americanas, responsáveis pela proteção ao governo, e o regime iraniano, com o qual tem ligações políticas desde a ditadura de Saddam Hussein.
Yiad Allawi
Premiê interino na segunda fase da ocupação, quando a administração militar norte-americana começou a restituir a autoridade aos iraquianos, é um político xiita de orientação laica. Favorito de Washington, aliou-se a líderes da minoria sunita, conquistou a maior votação nas legislativas e reivindica a chefia do novo governo.
Moqtada Al-Sadr
Líder xiita mais radical, liderou um levante antiamericano nas cidades sagradas de Karbala e Najaf, em 2004, e organizou a milícia Exército do Mehdi. Personagem central da violência sectária entre xiitas e sunitas, acertou em 2007 a desmobilização e transformou o grupo armado em um dos partidos políticos que representam a maior comunidade religiosa do país.
Ali Al-Sistani
Autoridade religiosa mais respeitada pelos xiitas iraquianos, o grão-aiatolá é adepto de uma corrente que prega a não interferência com o poder temporal. Pela ascendência que exerce, no entanto, tem influência decisiva nas questões fundamentais do país, como ocorreu com a nova Constituição.
Jalal Talabani
O atual presidente do Iraque representa no poder central a minoria étnica curda, que foi duramente perseguida sob Saddam e hoje governa o norte do país com considerável autonomia. A composição do novo Parlamento tornou dispensável a inclusão dos curdos para a composição de uma maioria, e Talabani deve perder o posto para um dos líderes xiitas.
Clã Al-Hakim
A família que lidera o Conselho Islâmico Supremo do Iraque já não tem a posição predominante que ocupava na comunidade xiita logo após a queda de Saddam, em 2003. No entanto, as forças de segurança iraquianas têm presença marcante dos egressos da milícia Al-Badr, criada pelo clã. O partido é considerado um dos mais próximos ao regime iraniano.