postado em 02/10/2010 08:00
Mesmo com o fim da rebelião policial e a bem-sucedida operação militar de resgate do presidente Rafael Correa, o Equador deve continuar sob estado de exceção por mais quatro dias. De volta ao Palácio de Carondelet, sede do governo, Correa reiterou que não haverá negociação mediante chantagem: ;Sob pressão, nada. Sob diálogo, tudo;, completou. ;Maltrataram, sequestraram o presidente, e para liberá-lo caíram irmãos equatorianos;, completou o mandatário, que passou mais de sete horas em um hospital cercado por policiais amotinados. Segundo o ministro da Saúde, David Chiriboga, a rebelião deixou cinco mortos ; dois policiais e um civil em Quito e dois civis em Guayaquil ; e 193 feridos.
Correa destituiu ontem o chefe da Polícia Nacional, Freddy Martinez, e culpou os partidários do ex-presidente Lucio Gutiérrez pela crise, que classificou ;uma tentativa de golpe de Estado;. As ruas das principais cidades começaram a voltar à normalidade, com o retorno dos policiais ao trabalho. Lojas e agências bancárias, mesmo com receio, reabriram as portas. Para o lugar de Martínez, o ministro do Interior, Gustavo Jalkh, anunciou o nome do general Patricio Franco. ;Promovemos também essa nova liderança, um processo de reconciliação;, disse Jalkh. Os recursos da polícia serão alvo de uma auditoria pública na próxima semana.
No entanto, o governo ainda não esclareceu se haverá revogação da Lei de Serviço Público, ratificada por Correa na quarta-feira, com veto a alguns artigos. Ela foi o motivo da rebelião, porque retira bônus e gratificações dos policiais. Tampouco foram retomadas as conversas sobre a ;morte cruzada;, mecanismo constitucional que permite ao presidente dissolver o Congresso e antecipar as eleições legislativas. ;Não podemos cantar vitória totalmente. A situação está superada por agora, mas não podemos confiar. A tentativa golpista possivelmente tem umas raízes por aí. Temos de buscá-las e extraí-las;, disse o chanceler Ricardo Patiño.
Em várias partes do mundo, autoridades políticas, intelectuais e cidadãos comuns se perguntaram se o Equador sofreu uma tentativa de golpe de Estado e questionaram sobre o futuro da democracia na América Latina. O editor do jornal El Comercio, Martín Pallares, destacou em editorial que ;a intenção de derrubar o presidente não foi expressada em nenhum momento;, e que ;Correa nunca deixou de governar;. ;No interior do Hospital da Polícia, onde ele afirmou que estava ;sequestrado;, o presidente continuou dando ordens e governando o país;, destacou. ;O que aconteceu com a polícia, se bem que absolutamente intolerável e reprovável, foi consequência da forma de (Correa) conduzir o país;, que Pallares considera como abusiva. As redes sociais da internet, porém, registraram milhares de mensagens como: ;Não ao golpe de Estado no Equador; e ;Eu apoio Rafael Correa;, além de frases a favor da defesa da democracia no Equador e da América Latina.
Lula
O presidente Luiz Inácio Lula da Silva criticou ontem a rebelião dos policiais, e disse que ;os golpistas já se deram conta da burrice que fizeram tentando dar golpe no Rafael Correa;. Em São Bernardo do Campo (SP), onde participou de atos de campanha eleitoral, Lula declarou que as eleições no Brasil, amanhã, serão uma ;demonstração para qualquer golpista do Equador não pensar em derrubar um presidente eleito democraticamente;. Em Buenos Aires, o ministro interino das Relações Exteriores, embaixador Antonio Patriota, representou o Brasil na reunião de emergência da União de Nações Sul-Americanas (Unasul). A anfitriã, a presidenta da Argentina, Cristina Kirchner, disse que a situação no Equador está ;sob controle;. ;Temos que celebrar o fato de que nosso companheiro Rafael Correa foi libertado e se encontra em bom estado;, disse Cristina.
"Os golpistas já se deram conta da burrice que fizeram tentando dar golpe no Rafael Correa;
Luiz Inácio Lula da Silva, presidente do Brasil
Luiz Inácio Lula da Silva, presidente do Brasil
Entrevista Lucio Gutiérrez
;Foi tudo um show midiático;
Em visita a Brasília para conhecer a urna eletrônica brasileira, o ex-presidente do Equador Lucio Gutiérrez falou ao Correio com exclusividade e negou participação na desestabilização do governo de Rafael Correa. Para o líder do partido oposicionista Sociedade Patriótica, a rebelião dos policiais contra equatorianos não passou de ;show midiático; encenado pelo presidente para esconder a suposta corrupção do atual governo.
O presidente Rafael Correa acusou-o de estar por trás do que ele chamou de golpe de Estado. Como o senhor responde?
Primeiro, rechaço de maneira categórica que esteja por trás do protesto realizado pela polícia. Segundo, quero dizer ao Brasil e ao mundo que no Equador não houve nenhuma tentativa de golpe. O que houve foi um protesto dos policiais de mais baixa hierarquia, porque seus salários foram diminuídos. E o presidente não podia ter ido discutir com eles, tinha que ter deixado isso para os oficiais, os capitães, os tenentes. O único responsável pelo que aconteceu, por todo esse show midiático, se chama Rafael Correa. Ele não foi sequestrado. Um sequestrado não pode ter microfone, não pode dizer: ;Aqui estou, me matem;. Um sequestrado não pode sair na janela.
Na noite anterior ao confronto com a polícia, Correa se reuniu com a ministra de Política pensando em dissolver o Legislativo. Por que isso aconteceu?
O presidente Correa, para desviar a atenção da corrupção de seu governo, dos contratos de seu irmão Fabrício com o governo, das denúncias de suborno à própria irmã, para tapar tudo isso, diz permanentemente que vai renunciar e desvia a atenção das pessoas. Ou depois diz: ;Vou dissolver o Congresso e aplicar a morte cruzada;, e então novamente o país se põe a discutir a morte cruzada e se esquece das denúncias. (Correa) não quer que se investiguem as denúncias de que seu governo teria vínculos com as Farc, ou de que ele próprio teria recebido financiamento das Farc.
O senhor considera que o que aconteceu foi um ;autogolpe;?
Há gente falando de autogolpe, parecido com o que se diz que Chávez fez na Venezuela para recuperar popularidade. Porque, segundo as pesquisas de opinião, o presidente estava caindo nas intenções de voto. E a oposição estava subindo. Porque no Equador há cada vez mais pobreza. E foi o que os policiais disseram ao presidente: ;O dinheiro não está dando;.
Alguns meios estão comparando o que aconteceu agora no Equador com o golpe contra Manuel Zelaya, em Honduras. O senhor acha que há uma onda contra a democracia na América Latina?
Esse socialismo do século 21 é uma real ameaça às democracias. A democracia não significa apenas ganhar eleições, mas ter liberdade de expressão, prestar contas do dinheiro público, ter independência das funções de Estado, ter a participação plena dos partidos políticos em igualdade de condições. E nada disso existe no Equador.
Qual é o motivo de sua visita a Brasília?
É uma visita pessoal para observar o processo e o controle eleitoral, porque no Equador estamos muito preocupados com as fraudes das últimas eleições, patrocinadas por Rafael Correa. E já começaram a falar, no Conselho Nacional Eleitoral, que querem introduzir o voto eletrônico e trazer o modelo venezuelano. E perguntamos: por que o venezuelano, e não o brasileiro? Então, quero observar de maneira reservada, porque depois quero vir aqui com vários partidos políticos, pedir uma visita oficial ao Tribunal Superior Eleitoral (TSE), depois que passe o trabalho das eleições, e ver como é esse processo do voto eletrônico. E se quiserem o voto eletrônico no Equador, que seja o do Brasil, para que as eleições sejam transparentes.
O senhor pensa em sair candidato nas próximas eleições presidenciais?
Primeiro, temos que reinscrever o partido político, porque não há partidos políticos. E depois convocar uma grande unidade nacional, porque estamos em desvantagem perante o presidente, que tem cinco canais de televisão, um público e quatro que encampou ao setor privado. E os outros cinco canais que existem, o presidente os pressiona para tirar os jornalistas que criticam o governo. Nesse ambiente, os partidos têm muita desvantagem pertante o presidente. Então, depois de fazer esse trabalho, vamos ver quem é a melhor pessoa para nos representar, para enfrentar e derrotar nas urnas esse modelo de socialismo do século 21, que tanto dano está causando à democracia. (VV)