postado em 09/10/2010 11:44
O novo código que regula as relação familiares em Angola deve incorporar, pela primeira vez, uma regulamentação para o casamento tradicional africano, chamado pelos angolanos de alambamento. Em entrevista ao Jornal de Angola, a diretora da Família e Promoção da Mulher no Huambo, Maria do Rosário Amadeu, afirmou que o fato de o alambamento não ser reconhecido juridicamente tem causado muitos transtornos à sociedade. Segundo ela, a nova legislação também deve levar em conta os casos de mulheres que têm filhos com homens casados que se recusam a reconhecer as crianças.No alambamento não há certidões, assinaturas e nem rituais religiosos para consagrar o casamento. O homem presenteia os pais da mulher com base em um rol de pedidos, elaborado para confirmar seu interesse em fazer parte da família. Tradicionalmente, quando essas condições são aceitas, a mulher passa a ser tratada pela sociedade como esposa, mesmo que, do ponto de vista formal, não haja casamento. Essa espécie de aprovação familiar é levada a sério em muitos países africanos.
Em Moçambique, a prática é muito parecida e recebe o nome de lobolo. O casamento propriamente dito, registrado em cartório (ou na conservatória, como se diz nos países africanos lusófonos), é considerado menos importante sob ponto de vista social, sobretudo nas pequenas comunidades no interior. Mas ele dá a proteção jurídica à esposa e aos filhos que o alambamento e o lobolo não alcançam.
O casamento tradicional pode ocorrer antes ou depois da união de fato do casal. Entretanto, é comum às mulheres dizer que só se sentem seguras depois da cerimônia tradicional. ;Depois de 18 anos finalmente fui lobolada. Esperei tanto por este momento. Estou muito feliz;, diz Milagrosa Sitóe, de 33 anos, ainda vestida de branco, no quintal da casa dela, no vilarejo de Guijá, província de Gaza, interior de Moçambique. Ao lado dela, o marido, Arlindo Mulhoi, também não disfarçava a alegria. ;Agora sou um mukonwana, genro de verdade;, afirmou.
Antes de lobolar Milagrosa, Arlindo era apenas mukwaxi, palavra da língua xangana que indica que o companheiro de uma mulher ainda não cumpriu totalmente sua obrigação tradicional. O tempo que estão juntos (18 anos) e os quatro filhos não fazem diferença. ;Agora, sim, o sangue dos filhos pertence a ambos. Se o homem não faz lobolo, não é genro legítimo. Enquanto não lobolou, os filhos não são seus;, explicou Alexandre Sidomi, tio de Milagrosa, que acompanha o lobolo. ;Genro é aquele que lobolou a sua mulher. Aquele que não lobola e que tem filhos, esses filhos não lhe pertencem, fazem parte só da família da noiva;, confirmou outro tio, Armenio Saia.
Quando a mulher casada morre sem ser lobolada, o marido viúvo não pode sequer enterrar o corpo. Antes precisa cumprir sua obrigação, sob pena de ser reprovado por toda a comunidade. Os dois tios de Milagrosa aprovaram o lobolo da sobrinha. Eles eram parte de uma espécie de ;comissão de parentes" - a madoda - que confere se os pedidos feitos para o noivo foram efetivamente atendidos. A conferência é parte da cerimônia, que foi integralmente acompanhada pela Agência Brasil.
O ritual do lobolo
A tradição começou com um chá, servido para as visitas no pátio que serve de sala de estar do casal. Arlindo estava sozinho; desde a véspera, Milagrosa havia ido para a antiga casa onde morou e onde atualmente vivem suas irmãs solteiras e algumas tias e primas. Tanto a mãe quanto o pai dela já morreram, mas os tios se encarregaram de fazer os pedidos e Arlindo, de cumpri-los. O noivo mostrou aos parentes quais foram as exigências da família de Milagrosa para o lobolo: um terno com sapatos e camisa para o tio da noiva, capulanas, mukume e vemba (tecidos floridos tradicionais) para as tias, 12 litros de vinho, quatro caixas de refrigerante e cerveja, uma esteira de palha (a cama do casal), 8,5 mil meticais (MT - moeda moçambicana) em dinheiro (cerca de R$ 400, equivalente a 3,5 salários mínimos moçambicanos), além de uma vaca, cujo preço na região fica entre MT 8 mil e MT 12 mil, dependendo do peso e da idade do animal. Três pequenos potes de rapé completavam o rol de solicitações.
Arlindo, que é alfaiate no vilarejo, demorou quase dois anos para recolher tudo. Sem ordenado fixo, estima que seus ganhos variem entre MT 3,5 mil e 4,5 mil por mês. Queria ter feito antes. ;Agora tenho como cumprir a tradição. É uma forma de agradecer aos pais dela por tê-la guardado bem e me confiado sua filha;, diz ele.
Em um canto o quintal, Madalena, a segunda esposa de Arlindo, acompanha à distância. Ela também não foi lobolada, mas terá de esperar sua vez. A primeira esposa deve ser lobolada antes. Arlindo tem dois filhos com Madalena, que é mais jovem que Milagrosa.
Não há limite para casamentos tradicionais. Um homem pode ter tantas esposas quanto puder manter. Tradicionalmente, mulher que é lobolada fica casada para sempre. Se o marido quiser outra esposa, costuma levá-la junto. Nas cidades, a lei (que proíbe a poligamia) e as regras cristãs da Igreja Católica - trazida pelos portugueses para Moçambique - e das denominações evangélicas que cresceram muito nos últimos ano têm feito com que a maioria dos homens tenha apenas uma mulher. Entretanto, o adultério é prática comum. As campanhas anti-aids (a doença é muito disseminada no país) costumam tratar do tema em peças publicitárias e até no material didático usado pelos estudantes de escolas públicas.
Na hora marcada, 9 da manhã, os parentes seguiram a pé até a casa da família da noiva, carregando o lobolo, a vaca inclusive, e cantando pelas vias de terra. Bem vestidos, recebem o carinho da vizinhança, que sempre se alegra em dia de lobolo. O nkulunguana, grito de alegria, de influência árabe, é ouvido em todo bairro. O noivo não acompanhou; só irá para a casa da noiva se tudo correr bem e o lobolo for aceito.
Sempre cantando, as famílias se encontraram na frente da casa de Milagrosa, que não tem portão ou grade ; apenas um portal de madeira simples, enfeitado com flores para a ocasião. Um tronco na frente da passagem é retirado por uma das tias, em meio à cantoria, para mostrar que a visita é bem aceita. Cerca de 100 parentes se aglomeram no terreno. Estão com roupa de festa: mulheres de vestidos longos, homens de camisa e paletó, mesmo com o calor de 30 graus Celsius. Ao lado, jovens depenam galinhas que foram mortas ali mesmo, havia poucos minutos. Rapazes retiram o couro de um cabrito pendurado em uma árvore ; um dos três que serão servidos para os convidados. Também há xima (tradicional purê de farinha de milho), arroz e batata frita. Tudo cozido à lenha, em fogueiras montadas no quintal.
A madoda confere os itens longe dos convidados e dos noivos. Depois de um tempo, se junta aos demais em uma roda no quintal. Senhoras com capulanas coloridas sentam-se no chão, sobre esteiras de palha. Aos mais velhos são oferecidas cadeiras. As mulheres cantam o tempo todo em xangana, a língua materna da maioria. As letras recomendam paciência (tiyisela) e avisam à família visitante que, apesar das exigências, eles querem paz (kurhula).
A noiva sai de seu quarto acompanhada das irmãs. Apreensiva, ouve as considerações dos parentes sobre o lobolo e o noivo. O ancião da vila (nduna) passa a palavra a quem queira se manifestar. Ao fim de quase uma hora, é dado o veredito da comunidade: o lobolo foi aceito. O noivo é, então, recebido com festa. As tias e primas trazem os presentes da noiva: colheres de pau, tachos de madeira, uma enxada, capulanas coloridas. E também um galão de plástico, para buscar água para casa na única fonte do lugar.
Começa o almoço, que se estenderá até o fim da tarde, quando o sol for embora. Sem a interferência de um juiz de paz ou de qualquer líder religioso, Arlindo, Milagrosa e os quatro filhos passam agora a ser, pelas regras tradicionais africanas, uma família.