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Cúpula da Otan deve confirmar divergências entre aliados no Afeganistão

postado em 19/11/2010 03:40

Preparativos da cúpula da Otan, em Lisboa: debate sobre a retirada militar

Matiullah Qaderdan sente sempre que precisa ir a Mohamad Agha, a cidade onde nasceu, situada na província de Logar, a cerca de 70km de Cabul. ;Quando saio à noite, primeiro temo que as forças da Otan (Organização do Tratado do Atlântico Norte) pensem que eu sou um talibã. Depois, me preocupo se os próprios talibãs creem que eu trabalhe para o governo;, afirma ao Correio o auditor fiscal de 25 anos, que mora na capital do Afeganistão. Ele já soube de várias pessoas executadas pelos milicianos, ante a mínima desconfiança. A devolução da sensação de segurança para os 29,1 milhões de afegãos dependerá do que decidirem os 28 chefes de Estado e de governo reunidos a partir desta sexta-feira (19/11), em Lisboa, na cúpula da Otan. Um anúncio sobre o cronograma do fim da ocupação esbarra em divergências entre aliados.

O presidente dos Estados Unidos, Barack Obama, defenderá começar a transferir a responsabilidade da segurança para as forças afegãs no primeiro semestre de 2011. A Casa Branca também pretende retirar suas tropas, de forma progressiva, a partir de 2014. No entanto, o primeiro-ministro britânico, David Cameron, insistiu que todos seus soldados retornarão ao Reino Unido em cinco anos. ;Até 2015, teremos desempenhado um papel enorme (;), feito enormes sacrifícios para um Afeganistão melhor, mais seguro e mais forte, e acho que o povo britânico merece saber que existe um ponto final em tudo isso;, declarou o premiê. ;É por isso que eu estabeleci o prazo de 2015, e, sim, é um prazo;, acrescentou.

Por sua vez, o ministro de Defesa da França, Alain Juppé, expressou o desejo de iniciar a retirada de seus militares. ;O Afeganistão é uma armadilha para todos os envolvidos ali;, admitiu . Obama terá uma audiência amanhã com o colega afegão, Hamid Karzai, e deverá ouvir um pedido de redução da presença militar e das incursões aéreas no país. Erros sucessivos da Otan provocaram a morte de inocentes, durante bombardeios.

Hairan, analista afegão: Obama tem abordagem Para Abdulhadi Hairan, analista do Centro para Estudos de Conflito e Paz (Caps), em Cabul, o adiamento da transferência de segurança e a postergação da retirada para 2014 são ;abordagens bastante realistas; do governo Obama. Em 2009, o líder americano havia estipulado o fim dos combates para 2011 ; prazo considerado surreal pelo afegão. ;As forças de meu país não estão prontas para encarar essa imensa responsabilidade. E o povo não confia em Karzai, enterrado até o pescoço na corrupção;, comenta, por e-mail. A precipitação de Obama levou os insurgentes a intensificarem os ataques, a fim de apressar a desocupação, e despertou a percepção de que os talibãs vencem a batalha.

Estratégias

Hairan admite que retirar as tropas do Afeganistão sem um governo legítimo e estável e com a presença de um Exército mal treinado seria um ;erro imenso;. Por isso, ele espera que os países-membros da Otan discutam meios de capacitar as forças locais, promover a sociedade civil e os valores democráticos, fortalecer as instituições, reduzir a prevalência da corrupção, garantir eleições limpas e pressionar os vizinhos para que interrompam o apoio a grupos terroristas. ;Acho que 2014 é um prazo ideal para isso;, observa.

Professor de estratégias globais e especialista em terrorismo pela Foundation for Defense of Democracies (em Washington), o libanês Walid Phares considera a estratégia de Obama arriscada e vê uma manobra política doméstica. ;É o mesmo que dizer aos talibãs que os EUA os combaterão arduamente até 2014 e, então, vão se retirar do Afeganistão. O Talibã vai resistir até essa data para retomar o controle do país, após a retirada;, alerta. Segundo ele, o cronograma da Casa Branca visa tranquilizar a base conservadora dos EUA de que a luta contra os insurgentes continua. Ao mesmo tempo, busca acalmar a extrema-esquerda e os muçulmanos de que as tropas começarão a sair em 2014, caso o presidente seja reeleito.

Durante a cúpula da Otan em Lisboa, a aliança atlântica e o Afeganistão devem assinar um acordo de cooperação a longo prazo, calcado no compromisso com a segurança do país. ;Eu acho que nós subestimamos o desafio e nossa operação no Afeganistão não teve recursos suficientes. E, sim, foi um erro;, admitiu ontem o dinamarquês Anders Fogh Rasmussen, secretário-geral da Otan. A reunião ocorre sob um forte esquema de vigilância, com a mobilização de 7 mil policiais e soldados.

Confira artigo de Abdulhadi Hairan

Como estabilizar o Afeganistão

A decisão de postergar a a transferência de segurança às forças afegãs, o adiamento da retirada para 2014 e o pedido a aliados para que enviem mais tropas ao Afeganistão são abordagens bastante realistas do governo Obama e da comunidade internacional. Quando o presidente norte-americano anunciou, em 2009, que as forças de seu país sairiam do Afeganistão em 2011, eu disse em uma conferência que isso não era realista porque as forças afegãs não estão prontas para encarar essa imensa responsabilidade. Além disso, os afegãs não confiam no governo Karzai porque ele está enterrado até o pescoço na corrupção. O anúncio teve efeitos bastante negativos. Os insurgentes e seus simpatizantes aumentaram os ataques para precipitar a retirada. Isso resultou em mais baixas e na suspensão dos diálogos de paz. Também desapontou os afegãos, porque eles imaginam que a comunidade internacional sairá sem finalizar o trabalho, provocando uma guerra civil. Esse pensamento amedrontou os afegãos e fez com que eles abandonassem a esperança no futuro. Houve uma percepação de que os insurgentes estão vencendo a guerra e isso deteriorou a situação de segurança. Milhares de afegãos começaram a migrar para a Europa, para os Estados Unidos e para países árabes. O anúncio de Obama de que as forças sairiam em 2011 foi um erro.

Retirar as forças internacionais do Afeganistão sem deixar um governo legítimo e estável e um Exército forte e treinado seria um erro imenso. O país se tornaria novamente um abrigo terrorista e uma grande ameaça à paz mundial. Antes de a comunidade internacional sair do país, há uma forte necessidade de se treinar o Exército, promover a sociedade civil e os valores democráticos, fortalecer as instituições, reduzir a ameaça de terrorismo e a prevalência de corrupção, tornar o governo afegão responsável, garantir eleições limpas e colocar mais pressão sobre os vizinhos para deixarem de apoiar os terroristas. Acho que 2014 é um prazo ideal.

Tenho certeza de que o Exército afegão não pode defender o país contra a ameaça do terrorismo. Não pode fornecer segurança, porque não é treinado. O governo Karzai é muito impopular por causa das eleições fraudulentas e da corrupção. Seu governo é fraco e desacreditado.

Para tornar o governo afegão estável e forte o bastante para fornecer segurança e serviços públicos são precisos alguns passos. Em primeiro lugar, o Paquistão e o Irã precisam parar de apoiar grupos extremistas, e a Arábia Saudita, interromper o fornecimento de dinheiro para redes insurgentes. Se isso não ocorrer, não haverá forma de remover a ameaça do terrorismo. Em segundo lugar, a corrupção no governo precisa acabar. Caso contrário, os afegãos não confiarão no governo e isso inevitavelmente legitimará as ações do Talibã. Em terceiro lugar, o Exército afegão precisa ser bem treinado e equipado de modo profissional, e as instituições devem ser fortalecidas para fornecer serviços públicos. Ou a contrainsurgência jamais terá sucesso. Precisamos ainda de agências de monitoramento independentes, a fim de tornar as eleições livres de fraudes.

Abdulhadi Hairan é afegão e analista do Centro para Estudos de Conflito e Paz (Caps), em Cabul

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