Mundo

Com 850 mi de habitantes, África enfrenta ditadores, miséria e violência

postado em 26/12/2010 10:22
Manifestante grita, após queimar pneus em avenida de Abdijan, capital da Costa do Marfim: risco real de uma guerra civilJean Bedel Bokassa se proclamou imperador e praticou o canibalismo enquanto comandou a República Centro-Africana, entre 1966 e 1979. Idi Amin Dada, o ;açougueiro de Uganda;, ordenou a execução de meio milhão de pessoas e governou com mão-de-ferro de 1971 a 1979. Muammar Kadafi ascendeu ao poder na Líbia em 1969, implantou um ;socialismo islâmico; e há quatro décadas se mantém à frente do país. Os exemplos se perpetuam: Omar Al-Bashir, no Sudão; Charles Taylor, na Libéria; Mohamed Siad Barre, na Somália; Laurent Kabila, na República Democrática do Congo; Mengistu Mariam, na Etiópia. A África conta com uma história de ditadores brutais e de frágeis democracias. Desde 2008, o continente viu golpes de Estado bem-sucedidos em Níger, Guiné, Madagascar e Mauritânia. A Costa do Marfim enfrenta desde o fim de novembro o ápice de seis anos de instabilidade política: o presidente Laurent Gbagbo e o rival Alassane Ouattara declaram-se vitoriosos nas eleições. A corrupção e o passado de guerras civis sangrentas marcaram com sangue e miséria um continente que abriga cerca de 850 milhões de pessoas.

Natural de Serra Leoa e renomado especialista em África, Ayo Johnson admite: ;É embaraçoso e triste, mas a realidade é que a política e a democracia africanas estão numa espécie de encruzilhada;. O especialista, que edita o site Viewpoint Africa, explica que alguns países enfrentaram guerras e outros sofreram golpes ou experimentaram ciclos repetidos de governos fracassados e corruptos. ;Poucas são as nações que encontraram um grau de governança;, acrescenta. Ele cita a África do Sul como exemplo de superpotência continental ; 26; economia mundial, tem um Produto Interno Bruto (PIB) de US$ 504,6 bilhões ;, Gana como uma nação ;brilhante; e a Nigéria como aspirante a potência regional. ;A África, como um todo, tem um longo caminho a percorrer, até se tornar responsável. Com o tempo, o continente pode mudar e ser visto de forma mais progressiva pelo resto do mundo;, espera Johnson.

Esse grau de responsabilidade exige sacrifícios. De acordo com Johnson, a desigualdade social e a pobreza se transformaram em pragas na África. ;São males provocados pela má governança e pelo julgamento errôneo feito por alguns líderes;, sustenta o analista leonês. A corrupção, apregoada pelo Ocidente como se fosse uma característica arraigada na cultura e na ideologia africanas, tem estrangulado a política em alguns países. ;Seus efeitos em cadeia afetam cada faceta dos governos, atingindo todo cidadão que busca acesso à saúde e à educação;, diz Johnson. Vários mandatários desviam e depositam milhões de dólares no exterior, enquanto a população mergulha na fome.

Michael McGovern, antropólogo da Universidade de Yale (nos Estados Unidos) com expertise em África, acredita que a relação miséria-poder é recíproca. ;A má governança e a guerra obviamente criam a pobreza, ao interromperem a educação, a saúde, a agricultura e as atividades econômicas. Ao mesmo tempo, a pobreza tende a criar instabilidade e, com menos perspectivas de vida, as pessoas buscam vantagens por meio do controle político, inclusive com o uso da violência;, afirma o norte-americano, que já vê mudanças positivas.

Estabilidade
Apesar de reconhecer que os ditadores Robert Mugabe (Zimbábue), Laurent Gbagbo (Costa do Marfim) e Muammar Kadafi (Líbia) ainda concentram a atenção da mídia internacional, ele lembra que Gana e Guiné já mostram uma face diferente da política africana. Os dois países disputaram eleições mais disputadas que na Costa do Marfim, e os derrotados aceitaram a derrota. ;Ainda que alguns dos dinossauros políticos da África não estejam felizes com a democracia, uma ampla parcela da população quer ser capaz de escolher seus líderes;, explica. Além disso, instituições como a União Africana, tomam a liderança, ao apelar contra práticas abusivas e ilegais.

A fragilidade política da África tem raízes históricas, e não culturais. É o que garante Lansana Gberie, analista do Instituto de Estudos de Segurança , em Adis-Abeba (Etiópia). Segundo ele, a maior parte dos países africanos foi irracionalmente fatiada pelos europeus, durante uma experiência colonial muito breve. Os sistemas criados pelos europeus eram apenas superficiais, ao serem repassados aos africanos. ;Esse é um problema fundamental: pessoas e tradições diferentes desembarcaram na África, sem que tivessem tempo de arraigar novos sistemas;, diz. Os líderes que levaram a África à independência surgiram pouco antes ou imediatamente após o domínio colonial, quando a política ainda não estava madura o suficiente.

Natal violento
As autoridades nigerianas estavam ontem em alerta depois que uma série de ataques contra cristãos deixou pelo menos 38 mortos na véspera de Natal. Sete explosões atingiram a cidade de Jos, no centro do país, com um saldo de 32 mortos e 74 feridos. De acordo com a polícia, a maioria das vítimas fazia as últimas compras para a ceia. Milhares de pessoas perderam a vida nessa região, durante o ano, por causa do conflito entre cristãos e extremistas muçulmanos. Uma insurgência islâmica declarada em 2009 no norte do país assumiu o ataque de anteontem a três igrejas na cidade de Maiduguri. Três pessoas morreram e um dos templos foi incendiado.

TRANSFORMAÇÕES

;O quadro mudou significativamente nos últimos anos. Tem havido uma redução em situações de conflito violento na África e um aumento nas democracias ; consolidadas ou emergentes. As guerras civis sangrentas em Angola, Libéria, Serra Leoa e Burundi terminaram com intervenção externa;
Lansana Gberie, pesquisador do Instituto de Estudos de Segurança, em Adis-Abeba (Etiópia)

PRAGA HABITUAL

;Devemos aceitar que a corrupção é uma via de mão dupla, que se tornou um modo de vida para muitos líderes africanos. Estima-se que ela custe ao continente US$ 150 bilhões ao ano. Dinheiro que poderia ser gasto na saúde, na educação e na construção de uma economia rural;
Ayo Johnson, especialista em continente africano, natural de Serra Leoa


Vizinhos advertem Costa do Marfim

Após uma reunião extraordinária realizada na Nigéria, chefes de Estado da África Ocidental divulgaram comunicado no qual ameaçam usar a força para que o presidente da Costa do Marfim, Laurent Gbagbo, acate o resultado da eleição de novembro e dê posse ao rival Alassane Ouattara, atual primeiro-ministro. Desde que Gbagbo foi proclamado reeleito, no início deste mês, pelo menos 173 pessoas morreram numa onda de violência que aproxima o país da guerra civil. ;A comunidade não terá alternativa a não ser tomar outras medidas, incluindo o uso legítimo da força;, diz o texto dos governantes africanos, ao condenar a resistência do colega.

;O que quer que Gbagbo pense, ele claramente perdeu as eleições e precisa reconhecer a derrota. Ele tem cometido o terror contra a população civil, perseguido simpatizantes de Ouattara e praticado crimes contra a humanidade;, adverte Lansana Gberie, pesquisador do Instituto de Estudos de Segurança (ISS), em Adis-Abeba (Etiópia)

Para o leonês Ayo Johnson, o impasse trouxe à tona um país que se perdeu de si mesmo. ;Isso ocorreu porque o próprio povo não foi ouvido, o Judiciário se transformou em paródia e exibiu a fraqueza da comissão eleitoral;, analisa. Ele compara o cenário político na Costa do Marfim ao do Zimbábue e do Quênia, onde eleições motivaram uma reação popular e deflagraram violência, tanto por parte do vitorioso quanto do derrotado. ;Eventualmente, há espaço para uma negociação e a formação de um governo de unidade, que mais se parece um casamento de conveniência e termina por fracassar;, acrescenta.

Questionado se acredita na plena estabilidade política na África, o francês-marfinense Edouard-Kouadio, de 23 anos, rebateu: ;Eu acredito que a democracia parece ser um luxo no continente;. Até ela se tornar uma realidade para todos, o estudante aponta alguns passos importantes, incluindo o respeito às eleições e ao sufrágio universal, a construção de organizações sólidas e a liberdade de expressão. O empresário Mohamed Diabym, nascido em Abidjã, é pessimista. Sabe que a Costa do Marfim convive há uma década com a crise. ;Se não houver uma saída negociada, haverá mais crimes, mais covas coletivas e mais refugiados;, adverte. (RC)

Tags

Os comentários não representam a opinião do jornal e são de responsabilidade do autor. As mensagens estão sujeitas a moderação prévia antes da publicação