Mundo

Massacre no Arizona expõe uma cultura do ódio dormente no país

postado em 16/01/2011 09:00

Um discurso político agressivo. A adoração pelas armas nos Estados Unidos, que remonta à própria história do país. A recessão econômica, que deixou muitos em apuros. Nas mãos de um desajustado, isso pode ser um coquetel perigoso e letal. Em 8 de janeiro, Jared Lee Loughner matou seis pessoas e feriu a deputada democrata Gabrielle Gilfords, além de 13 outros norte-americanos. A tragédia de Tucson, no Arizona, começa a levantar debates sobre temas polêmicos, como o direito do cidadão de possuir armamentos e uma retórica cada vez mais virulenta. No centro da tormenta, aparecem figuras controversas. A ex-governadora do Alasca Sarah Palin, líder do movimento ultraconservador Tea Party, já usou o microblog Twitter para exortar os simpatizantes a se voltarem contra a reforma da saúde. ;Não recue, em vez disso; recarregue;, escreveu, usando uma metáfora sobre o municiamento de uma arma. Em outro episódio, a republicana postou na internet um mapa dos EUA onde os candidatos democratas a ser derrotados nas eleições apareciam marcados com a mira de um revólver.


Timothy Patrick McCarthy, especialista em história dos EUA pela Universidade de Harvard, prevê a decadência de Palin. ;Ela se tornará mais um incômodo cultural do que uma política capaz de influenciar outras pessoas;, observa. ;Sarah Palin e o seu Tea Party são símbolos de nossos tempos problemáticos;, acrescenta, em entrevista por e-mail. De acordo com ele, a retórica de violência na política norte-americana fomenta uma cultura de ódio e alienação, além de uma teoria conspiratória contra o governo. ;Isso influencia pessoas instáveis a portarem armas e a matar.;


Por sua vez, Christian Lammert, professor de política norte-americana do Instituto John F. Kennedy (em Berlim), descarta que o ato tresloucado de Loughner tenha graves consequências para as ambições de Palin. ;A discussão sobre o uso da violência ou um aquecimento do discurso político enfraqueceria a posição dela dentro do Partido Republicano;, comenta. ;Enquanto vermos a aceitação das armas e a cultura fomentada do ódio na sociedade, assistiremos a Sarah Palin usar esse sentimento para mobilizar suas pretensões políticas.;

Explosão


Segundo o professor alemão, é inegável a existência de uma constante, porém embargada, cultura do ódio na política norte-americana. ;Esse tipo de cultura dormente, com raízes na fundação dos EUA, pode ser facilmente despertada, à medida que a sociedade enfrenta transformações ou uma crise econômica;, sustenta Lammert. O fenômeno ocorreu em pelo menos duas ocasiões: durante o Macartismo ; a patrulha anticomunista que durou do fim da década de 1940 a meados de 1950 ; e em plena era dos direitos civis, entre 1955 e 1968. Para Lammert, enquanto o uso de armas for socialmente aceito nos EUA, essa ;cultura do ódio; pode levar a uma explosão de violência, racional ou não. ;Em recentes campanhas eleitorais, membros do Tea Party repetidamente têm falado sobre milícias;, lembra ele, que considera esse tipo de oposição política violenta como ultrapassada.


Homem testa arma em loja especializada no Fort Worth, Texas: idolatria pelas armas nos Estados Unidos tem raízes históricas e culturaisExpert em comunicação política pela Universidade da Pensilvânia, Kathleen Hall Jamieson discorda de McCarthy e de Lammert. ;Não creio que haja uma cultura do ódio nos EUA. Como em outros países, temos indivíduos cujo comportamento e cuja retórica fogem dos padrões sociais aceitáveis;, afirma, classificando essas pessoas de ;exceção;. Kathleen diz que a Segunda Emenda da Constituição americana resguarda o direito individual de porte de armas. Ela admite não ter conhecimento de evidências capazes de sugerir que Loughner estivesse sob influência de declarações ou retóricas políticas, quando promoveu o massacre.

"Dormente, a cultura do ódio pode ser facilmente despertada, à medida que a sociedade enfrenta transformações ou crise econômica;

Christian Lammert,
professor de política norte-americana do Instituto John F. Kennedy (em Berlim)

;Somos uma família;

O presidente dos Estados Unidos, Barack Obama, exortou ontem a população do país a promover um ;novo espírito de bipartidarismo;. ;Antes de sermos democratas ou republicanos, somos americanos;, afirmou o mandatário, em seu discurso semanal transmitido pelas rádios. O pronunciamento ocorreu exatamente uma semana após o tiroteio em Tucson. Obama citou o heroísmo e a coragem na reação ao massacre e lembrou: ;As estórias nos lembram que somos uma única família, somos 300 milhões de fortes;.


O chefe de Estado norte-americano fez uma referência explícita a qualquer foco de tensão política capaz de levar à violência, destacando a coesão existente no Congresso, após a tragédia do Arizona. ;Não importa quão estridente e dissonante nossa política possa ser, foi um momento que nos fez recordar quem realmente somos ; e do tanto que dependemos uns dos outros;, observou Obama, citado pelo jornal USA Today.

;Precisamos manter nossa população segura, e ver que o sonho americano permanece vibrante e vivo para nossos filhos e netos.;
Na quinta-feira passada, a primeira-dama, Michelle Obama, já havia instado os pais americanos a ensinarem aos filhos a tolerância. ;Podemos ensiná-los o valor da tolerância, a prática de esperar o melhor, em vez do pior, sobre os que nos cercam;, escreveu, em carta aberta aos pais. ;Podemos ensiná-los a dar aos demais o benefício, sobretudo àqueles com os quais não concordamos;, acrescentou Michelle.

Assassino

Novos detalhes sobre o atirador Jared Lee Loughner foram revelados ontem pela polícia. Ele revelou um rolo de filme fotográfico no dia do massacre. As fotografias mostram o assassino segurando a arma do crime ; uma pistola Glock 9mm ; entre as pernas e apontada para as próprias nádegas. Às 4h12 do dia 8, ele divulgou no site de relacionamentos MySpace uma das fotos, em uma página intitulada ;Adeus, amigos;. A deputada Gabrielle Giffords, ferida na cabeça por Loughner, continua a apresentar substancial melhora no estado de saúde. ;Não esperaríamos por qualquer progresso a mais do que temos visto, dada a gravidade da lesão;, disse o médico Michael Lemole, chefe de neurocirurgia do University Medical Center, em Tucson.

Três perguntas para

[FOTO2]Timothy Patrick McCarthy, especialista em história
dos Estados Unidos pela Universidade de Harvard

Por que os EUA estão impregnados por uma cultura bélica, uma adoração pelas armas?
Os Estados Unidos têm o maior número de armas por cidadão ; 90 para cada 100, de acordo com estimativas recentes. A América tem uma história imperialista ; que começa com a chamada ;descoberta; do ;Novo Mundo;, quando os colonizadores dizimaram populações nativas para seu próprio ganho político e econômico. Somos uma nação que perdura na busca de guerras injustas no Oriente Médio. Somos uma nação que ama as armas, seduzida pelos fetiches machistas de ;poder; e ;dominação; e zelosamente comprometida com o direito de portar armas e de implantar armas de destruição em massa. Tudo isso, apesar do fato de que o contexto imediato para a ratificação da Segunda Emenda da Constituição ; a presença de uma força hostil ou estrangeira ; tenha desaparecido. O Arizona, em particular, tem leis sobre armas incrivelmente frouxas e uma patologia profundamente arraigada de estar dominado, seja pelos imigrantes, pelo governo ou pelos liberais, que buscam legalizar o porte. Tudo isso produz uma mistura cultural tóxica, que deixa aberta a possibilidade bastante real de que uma pessoa perturbada abra fogo contra seus concidadãos, durante um evento político.

Há alguma brecha na legislação sobre armamentos no país?
A falta de qualquer comprometimento real a uma séria regulação sobre armas é um dos aspectos mais perigosos da cultura política americana. O fato de esse jovem de Tucson ter entrado num supermercado e comprado mais munição do que agentes federais podem carregar é um crime, por si só. Ninguém deveria ser capaz de adquirir mais balas do que papel de toalha no Wal-Mart ou em qualquer outro lugar.

De que modo o governo deve atuar para evitar incidentes desse tipo?
Apenas duas coisas podem realmente prevenir incidentes como o tiroteio de Tucson. Em primeiro lugar, os americanos precisam ter um sério comprometimento com a proibição de certos tipos de armas e com a restrição ao acesso a todas elas. Também é preciso padronizar e fortalecer o processo de revisão das licenças para porte, e limitar o uso de armas para caça e outras recreações. Em segundo lugar, os americanos de todos os setores ; políticos, agentes culturais, empresários e cidadãos comuns ; devem começar a baixar a retórica da violência em nossa cultura. Isso está literalmente nos matando.

Tags

Os comentários não representam a opinião do jornal e são de responsabilidade do autor. As mensagens estão sujeitas a moderação prévia antes da publicação