postado em 19/01/2011 08:22
Enviada especialPorto Príncipe e Brasília ; Foram 25 anos de exílio, mas bastaram menos de 48 horas em Porto Príncipe para Jean-Claude Duvalier, mais conhecido como ;Baby Doc;, ser detido e indiciado pela Justiça. Depois de uma volta surpresa no domingo, o ex-ditador haitiano deixou o hotel de luxo onde estava hospedado e foi escoltado pela polícia até a sede da promotoria. O ex-presidente do Haiti, que comandou o país entre 1971 e 1985, foi acusado formalmente de crimes de corrupção, roubo e desvio de recursos públicos durante o exercício do poder. Ele declarou que teria regressado à terra natal para ;ajudar o povo;. No entanto, a viagem pode ser uma estratégia para um retorno do ex-mandatário ao poder, em meio à crise eleitoral.
A Promotoria Geral do Haiti fez as acusações formais contra Baby Doc, mas seu destino está nas mãos de um juiz, que deve decidir se abre o processo judicial. No início da noite de ontem (hora local), Baby Doc deixou o Palácio de Justiça acompanhado de seu advogado. Segundo um de seus defensores, o ex-ditador está ;livre, mas à disposição dos juízes;. Baby Doc tem passagem marcada para voltar amanhã a Paris.
Para grande parte dos haitianos, a notícia da volta de Baby Doc ao país ; e de sua detenção ; chegou pelos rádios de pilha. E não causou grandes reações. A opinião de Gabrielle Dieudonne, 42 anos, é de que o ex-presidente tem o direito de retornar ao país, por também ser um haitiano. ;Se ele tem algum problema com a Justiça, é a Justiça que deve fazer o seu trabalho;, disse Gabrielle. A haitiana, que hoje sobrevive vendendo de tudo, de ovos a produtos de higiene pessoal, mora em uma tenda no acampamento de Jean-Marie Vincent ; o maior da capital.
Mesmo depois de duas décadas de exílio, o ex-ditador ainda mantém certa influência sobre os haitianos. Apesar das duras marcas de violência de seu governo e de ter deixado para trás um alto índice de pobreza, a classe média foi beneficiada durante a ditadura e o Haiti não enfrentava tantos problemas de segurança. ;Há um sentimento variado em relação a Baby Doc. Alguns se lembram das benesses que tiveram desse governo e outros se lembram do terror que tiveram nesse governo;, afirmou o general brasileiro Luiz Guilherme Paul Cruz, comandante da Missão da ONU para a Estabilização do Haiti (Minustah).
Atenção
O Haiti sofre com a reconstrução do país, um ano após o terremoto que deixou 250 mil mortos, uma epidemia de cólera e um processo eleitoral ainda sem resultado oficial. Portanto, o retorno de Baby Doc pode estar ligado à atual fragilidade política. ;Ele voltou pensando na possibilidade de se arriscar politicamente e se conectar novamente com a elite porque faliu, a fonte secou. E sabia que enfrentaria um bloqueio diante da situação calamitosa e da presença da ONU. Ele jogou os dados para cima e, a princípio, está perdendo;, explicou Virgílio Arraes, professor de relações internacionais da Universidade de Brasília (UnB).
Para os militares brasileiros, que cuidam de grande parte da segurança do país, o momento é de atenção, mas não de alarde. ;Não sabemos ainda como (Baby Doc) vai impactar na população, mas muda alguma coisa. Não sabemos se ele continua com a mesma influência;, disse o coronel Ronaldo Lundgren, comandante do Primeiro Batalhão do Exército brasileiro (Brabatt-1).
A Anistia Internacional celebrou a apresentação de Baby Doc à Justiça e pediu que seus crimes de violação contra os direitos humanos sejam investigados. ;Essa detenção histórica é um primeiro passo bem-vindo para fazer justiça com um líder cuja milícia disseminou e sistematizou violações contra os direitos humanos, incluindo tortura, detenções arbitrárias e desaparições;, disse Javier Zuñiga, conselheiro especial do órgão, por meio de um comunicado. O primeiro-ministro haitiano, Jean-Max Bellerive, declarou ontem que, ;se existirem procedimentos nos quais Duvalier está envolvido, a Justiça fará o que tem que fazer;.
O povo haitiano parece não se incomodar com um retorno do ditador ao poder, mas com a reconstrução do país. Com a casa ainda em ruínas, em Cité Soleil, Nefil Fedna se preocupa com as questões mais básicas de sobrevivência. ;Não acho que ele queira voltar a ser presidente. Mas isso também não me importa, estou preocupado em ter o que comer. Tem três dias que não como nada;, disse Fedna, de 65 anos, junto aos filhos e netos.
(*) A repórter viajou a convite do Ministério da Defesa
A difícil tarefa de reerguer um Estado
Porto Príncipe ; O impasse no resultado do primeiro turno das eleições presidenciais e a volta do ditador Jean-Claude Duvalier, o Baby Doc, após 25 anos de exílio, são os mais recentes desafios de um Haiti que tenta se reerguer após o terremoto ocorrido há um ano. Enquanto, nas ruas, pode-se ver os haitianos ainda tentando superar as dificuldades agravadas pela tragédia de janeiro passado e pelo atual surto de cólera, o maior obstáculo em nível governamental ; e mesmo para as forças de paz da ONU ; é impedir que a situação precária do país coloque em xeque a conquista democrática representada pela eleição do atual presidente René Préval, depois de uma história política repleta de ditaduras e golpes de Estado.
;Essa reconstrução é um processo difícil, doloroso, sob circunstâncias de um governo que teve 30% de perdas em vidas e um percentual ainda maior em instalações, que já não eram de uma base muito favorável a eles. E vivendo o manejo de crise no seu dia-a-dia: desde a fase emergencial, a enchentes, furacão, cólera e eleições;, observou o comandante da Força Militar que atua no Haiti, general de brigada Paul Cruz, a um grupo de jornalistas brasileiros.
Por conta do terremoto de janeiro, as eleições de fevereiro passado foram canceladas e os postos de todos os deputados e de um terço dos senadores, cujos mandatos terminaram em junho, não foram ocupados desde então. ;Não temos o efetivo total do Senado, e, para certas reformas, há necessidade de maioria qualificada. Então, também há uma postergação das necessárias reformas legais e de ajustes que favoreçam providências como registro civil, de terras e de propriedade;, explicou o general.
Segundo ele, esse tipo de obstáculo dificulta, inclusive, para criar um ambiente propício para negócios no país. ;Não estamos falando de nada absolutamente fantástico, mas de investimentos mínimos, que tragam trabalho, emprego ; que é a necessidade do haitiano;, acrescentou.
O quadro se agrava ainda mais com a indefinição do resultado no primeiro turno, e os riscos de que o processo eleitoral se estenda por até mais três meses. Na última segunda-feira, o secretário-geral da Organização dos Estados Americanos (OEA), José Miguel Insulza, chegou a Porto Príncipe para apresentar a Préval o relatório final do organismo sobre as eleições. Os resultados oficiais do Conselho Eleitoral Provisório (CEP) dão o primeiro lugar à ex-primeira-dama Mirlande Manigat, seguida do candidato presidencial Jude Celestin e do cantor Michel Martelly.
O relatório da OEA, ao contrário da expectativa inicial, não estabelece uma classificação dos candidatos à presidência, apenas faz recomendações sobre o processo eleitoral, segundo explicou ontem Insulza. ;A missão técnica só pode fazer recomendações, o que tem feito com clareza na medida de suas possibilidades. O Conselho Eleitoral haitiano é quem deve decidir os resultados das eleições;, declarou Insulza ao lado do primeiro-ministro do país, Jean-Max Bellerive. O efeito que as conclusões da OEA teria na população preocupou o Exército brasileiro que comanda as forças militares da ONU. Tanto que, desde a segunda-feira, aumentou o nível de alerta nas tropas, e o contingente foi reforçado para a chegada de Insulza.
Ditadura
Outro elemento novo na equação política foi a volta de Baby Doc ao país, depois de 25 anos de autoexílio. Segundo o comandante Paul Cruz, no entanto, não há qualquer possibilidade de que haja o retorno de uma ditadura ao país. ;O ex-presidente Duvalier é mais um ator, e é claro que todos os atores envolvidos estão movimentando as suas peças. Mas não vejo nenhuma possibilidade de que aqui no país se instale qualquer tipo de ditadura. Qualquer coisa que esteja fora da legislação haitiana será veementemente repudiada pela comunidade internacional;, disse Cruz. (Isabel Fleck)