Porto Príncipe - Impossível ficar indiferente ao olhar de um haitiano. Os mesmos olhos que viram a destruição provocada pelo terremoto de janeiro de 2010 capturam o olhar do interlocutor para transmitir tudo o que não se consegue falar: o luto ainda presente pela perda dos familiares, a falta de perspectivas de uma vida melhor, a indignação pela curiosidade quase turística do estrangeiro sobre suas catástrofes pessoais. Nas crianças, o olhar é diferente, mas não menos incisivo. Há um misto de curiosidade, clamor por ajuda e esperança. Uma esperança na qual seus pais se apoiam para levar a vida em frente.
Um ano após a tragédia, que deixou mais de 250 mil mortos, os haitianos tentam se reerguer, indo às ruas em busca de trabalho, reconstruindo as próprias casas, ajudando outros em programas tocados por organizações não governamentais. Em um momento de indefinição política, com um processo eleitoral questionado, o que a maioria da população espera é que o próximo presidente estimule a criação de empregos, acelere a reconstrução do país e garanta o mínimo para que a população viva de forma digna, com saneamento básico e energia elétrica.
Hoje, há cerca de 1,3 milhão de desabrigados no país, alguns distribuídos nos 123 acampamentos de Porto Príncipe. Outros estão alojados nas ruínas de prédios da capital. Icario Celnea, 28 anos, vive no que restou da catedral à espera de ajuda para comer ou de uma improvável oferta de trabalho. Ele faz parte do imenso contingente de haitianos que precisaram ter partes do corpo amputadas após o terremoto - no caso de Icario, foi a perna esquerda. "Se para a maioria das pessoas já está difícil conseguir um trabalho, para mim ainda é pior", afirma o homem, que perdeu a mãe e a irmã na catástrofe.
A população tem de conviver com o lixo acumulado nas ruas, com a água contaminada pelos esgotos a céu aberto e com o surto de cólera, causado por todo esse descaso e que já matou quase 4 mil pessoas. Os haitianos reclamam da ausência do governo e creditam às ONGs e à Missão de Paz da ONU, liderada pelas tropas brasileiras, a pouca melhoria que conseguiram 12 meses após o terremoto. O governo já estimou que a reconstrução do país, a longo prazo, deverá custar US$ 11,5 bilhões. A ajuda internacional prometida de US$ 5,5 bilhões chega aos poucos, e, muitas vezes, de uma forma que o povo nunca verá, como por meio do alívio da dívida externa do país. Mas não há como só esperar. Os haitianos não podem olhar para o futuro enquanto não resolverem o seu presente. E é por isso que insistem em se reconstruir.
(*) A equipe viajou a convite do Ministério da Defesa
Clecina, Jorge e Cristila. Três diferentes histórias que se cruzaram no terremoto que devastou Porto Príncipe há um ano. Naquele 12 de janeiro, estavam todos na Catedral de Porto Príncipe, quando seus mundos vieram abaixo. Clecina Laporicia, 63 anos, perdeu o filho de 28 e feriu gravemente o braço quando o teto e parte das paredes do belo edifício gótico cederam com o abalo. Jorge Jeansan, 33, que também participava da missa no momento do tremor, ficou sem sua casa. Ele acredita que sobreviveu por um milagre. Cristila, de apenas um ano, ficou órfã com poucos dias de nascida e hoje é a razão da luta de todo o grupo que vive sob as ruínas da igreja.
São dezenas de haitianos, que não conseguiram lugar nos acampamentos ou simplesmente preferiram ficar no local ainda considerado sagrado para eles. Do lado de fora da catedral, ainda rezam, cantam e pedem aos céus por uma ajuda que não acreditam mais poder vir dos homens. ;Minha felicidade vem de Deus. É só nele que podemos confiar. Estamos abandonados, o governo do Haiti não olha por nós;, lamenta Jorge, que, apesar de todas as dificuldades, quase nunca tira o sorriso do rosto. Menos conformada é Clecina, cuja expressão evidencia as dores que ainda sente por conta da grave fratura no braço, protegida por um grande curativo, raramente trocado. ;O teto caiu sobre mim e também sinto muitas dores no peito. Nunca tive a ajuda de ninguém, até hoje não posso erguer meu braço;, reclama a senhora. Assim como todos os outros do grupo, ela sobrevive com as doações de dinheiro dos estrangeiros que visitam a catedral e da comida oferecida por ONGs.
Mas são poucos os haitianos que resolveram apenas esperar pela caridade alheia ou pela ajuda divina. A maioria tem tentado recomeçar a vida nos acampamentos, realizando pequenos serviços oferecidos à comunidade ou mesmo fazendo parte dos projetos tocados por organizações internacionais. É o caso de Jean Claude, 24 anos. Desde o início deste ano, ele é voluntário em um centro de atendimento da Cruz Vermelha no acampamento de Jean-Marie Vincent, o maior de Porto Príncipe, que abriga 50 mil pessoas. No posto, ele trabalha como assistente dos dois médicos que atendem, principalmente, gestantes e pessoas com suspeita de malária. ;É muito bom poder ajudar o meu povo, em um momento tão difícil. É gratificante para mim, e eu vejo que eles também ficam agradecidos;, conta o rapaz.
Preocupação
Nas ruas de Porto Príncipe, não é raro encontrar histórias de haitianos que deixaram de lado o sofrimento pessoal para cuidar de quem ficou ainda mais fragilizado diante de tamanha tragédia. Ao lado do acampamento de desabrigados do Campo de Golfe, no bairro de Pétion Ville, 75 crianças vivem em um orfanato improvisado por Alexis Guelmo, 32 anos. Quase a metade delas perdeu os pais no terremoto do último ano. No local há um campo improvisado de terra batida, uma sala de aula com bancos de madeira abrigada sob uma laje e barracas sem colchão, onde as crianças dormem. Alexis tem a ajuda de 16 voluntários e depende de doações esporádicas de empresas haitianas.
;Acredito que, assim como em um mesmo campo, as árvores crescem de uma maneira diferente, dependendo do tratamento dado a elas. As crianças podem também dar diferentes frutos, de acordo com o que recebem;, afirma Alexis. Na infância, ele foi auxiliado por um padre que pagou os seus estudos. A maioria dos meninos que vive no orfanato, como Olson Pierre, 14 anos, sonha ser jogador de futebol e se espelha nos craques da Seleção Brasileira. Mas Basile Stanley, também de 14 anos, apesar de ser bom de bola, deseja algo bem diferente: ;Quero ser presidente, para poder mudar o meu país;.
A preocupação com o futuro das crianças é talvez uma das características mais facilmente percebidas no povo haitiano. Em meio ao caos e ao lixo das ruas da capital, saltam aos olhos os uniformes limpos e alinhados dos pequenos a caminho da escola. Essa é uma tradição que, independentemente da condição do país e das famílias, sempre garantirá um pouco de esperança para o futuro do Haiti.
Experiência marcante
Hoje, quando o avião da Força Aérea Brasileira pousar em Brasília, 130 militares terão encerrado aquela que, certamente, terá sido a missão mais importante de suas vidas. Eles são os primeiros a desembarcar de um grupo de pouco mais de mil que retornam ao Brasil após seis meses no Haiti, compondo o contingente da Missão de Paz das Nações Unidas. Na bagagem, lembranças de tempos difíceis. O grupo chegou ao país mais pobre das Américas apenas seis meses após a maior tragédia do Haiti. A proteção de capacetes, coletes e fuzis não foi capaz de isolá-los das histórias de sofrimento e de superação dos haitianos, que se aproximam quase sempre com um sorriso das tropas brasileiras.
;Ninguém sai do Haiti da mesma maneira que chega. Aqui, começamos a refletir sobre nossas vidas, a partir de tudo o que vemos;, assinala o subtenente Luís Sarmento Vieira, que volta hoje a Brasília, cidade em que vive há 10 anos com a família. A mulher, Lúcia Helena, e as filhas Raquel e Débora, de 17 e 13 anos, acompanharam de longe toda a transformação de Sarmento, por meio de conversas rápidas, mas quase diárias, pela internet. ;A saudade e a distância da família são um dos obstáculos mais difíceis de superar. Mas toda essa experiência me fez passar a escutar mais, a dar mais valor às pequenas coisas;, garante o subtenente, que ainda terá que aguardar um pouco mais para abraçar a mulher e as filhas. A previsão de encontro é apenas na quarta-feira, após três dias de quarentena, pela qual todos os militares precisam passar quando chegam do país.
O trabalho desempenhado por Sarmento é uma prova de quão diversificada é a atividade e a rotina dos brasileiros que vão servir no Haiti. No Brabatt 1 (uma das divisões do batalhão brasileiro no país), ele era um dos responsáveis por registrar, por meio de fotos e vídeos, todo o trabalho realizado pelos colegas. Raramente precisou trocar a câmera por um fuzil, ou seguiu a escala rígida de horários dos outros militares ; seu trabalho quase sempre se estendia até mais tarde, acompanhando diferentes rondas ou mesmo equipes de jornalistas brasileiros e estrangeiros em visita ao país.
Mas foi a atividade diferente que garantiu a Sarmento, um dos 29 militares de Brasília no batalhão, a experiência única de fazer uma retrospectiva, em imagens, de tudo o que viveram nos seis meses de atividades. Seus últimos dias no Haiti foram de trabalho intenso para compilar vídeos e fotos dos melhores momentos em um filme curto, que emocionou os colegas. À família, ele também sempre teve a oportunidade de enviar, por e-mail, o seu olhar sobre o Haiti, em registros que muitas vezes o marcavam. ;Um dia tirei a foto de uma criança, durante uma missão. O olhar dela era tão marcante que não tive como não enviar para as minhas filhas;, lembra, dizendo esperar só o momento de encontrar as filhas para transmitir as lições que aprendeu.
Até 15 de fevereiro, todos os militares do Exército, da Marinha e da Aeronáutica que chegaram ao país em julho do ano passado terão retornado ao Brasil. Será a vez de mais mil homens iniciarem a trajetória aparentemente curta, mas inegavelmente marcante para sua profissão e sua vida. Ontem, 92 militares de Brasília seguiram para Porto Príncipe.
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