postado em 12/02/2011 08:00
;O Egito está livre! O Egito está livre! Ninguém mais vai atar minhas mãos.; Às 18h40 de ontem (14h40 em Brasília), enquanto caminhava entre a multidão, do palácio presidencial até a Praça Tahrir, o estudante Nadeem Abdel Gawad, 20 anos, clamava essas palavras ao telefone. Estava eufórico e, às vezes, parecia chorar. Ao fundo, buzinas e gritos se espalhavam pelo Cairo. ;As pessoas choram, se ajoelham e rezam. Você não pode acreditar nisso;, contou. Em frente ao prédio do Parlamento, bem perto de Tahrir, a jornalista independente Aliaa Hamed, 27 anos, interrompeu a entrevista e começou a gritar efusivamente. ;Estamos livres do passado de Mubarak;, declarou ao Correio. ;As pessoas acreditam que Deus derrubou o regime;, acrescentou. Cerca de 40 minutos antes de atenderem o celular, Nadeem, Aliaa e 80 milhões de egípcios tinham presenciado o desenrolar da história.
Nadeem Abdel Gawad, estudante de 20 anos, fala ao Correio a poucos metros do palácio presidencial no Cairo, logo após a renúncia de Mubarak
Aliaa Hamed, jornalista de 27 anos, fala ao Correio em frente ao prédio do Parlamento do Egito, logo após a renúncia de Mubarak
Tarek Shalaby, blogueiro e webdesigner de 26 anos, fala ao Correio da Praça Tahrir, logo após a renúncia de Mubarak
Mohamad Ghorab, consultor de tecnologia da informação, fala ao Correio direto do Egito
Depois de 29 anos no poder, o presidente Hosni Mubarak sucumbiu a uma revolução que teve a ajuda da internet, surpreendeu o mundo, durou 18 dias e custou a vida de pelo menos 300 egípcios. Desde as 18h de ontem (hora local), o Egito passou o poder às mãos do Conselho Supremo das Forças Armadas, liderado pelo ministro da Defesa, o marechal Mohamed Hussein Tantawi. ;Em nome de Deus, o misericordioso, o compassivo. Durante essas circunstâncias muito difíceis pela quais o Egito está passando, o presidente Mubarak decidiu que deixará o cargo e já pediu ao Conselho das Forças Armadas que assuma as gestões do país. Que Alá nos ajude;, afirmou o então vice-presidente, Omar Suleiman, ao ler um comunicado na TV. Horas antes, circulou o boato de que Mubarak tinha deixado a capital rumo ao balneário de Sharm el-Sheikh, no Mar Vermelho.
Duas horas após a renúncia de Mubarak, um porta-voz do Conselho Supremo das Forças Armadas divulgou uma nota com tom conciliador e reconheceu que ;não será uma alternativa à legitimidade popular desejada pelo povo;. Também cumprimentou o ex-presidente ;por tudo o que deu ao país em tempos de guerra e de paz, e por seu patriotismo, priorizando os mais altos interesses da nação;. Tantawi, o novo governante do Egito, dirigiu-se à frente do palácio presidencial e cumprimentou a multidão, de dentro de um automóvel civil.
Sem Mubarak pelo caminho, a oposição começa a planejar um papel ativo na transição. Mohamed ElBaradei, ex-diretor da Agência Internacional de Energia Atômica e Prêmio Nobel da Paz, disse que a ;vida pode recomeçar;. ;Minha mensagem aos egípcios é que eles ganharam a liberdade. Façamos o melhor uso dela e que Deus os abençoe;, celebrou, em entrevista à TV Al-Jazeera. Ele acrescentou que 11 de fevereiro de 2010 já é o melhor dia de sua vida. A organização Irmandade Muçulmana, outra força anti-Mubarak, destacou o ;triunfo pacífico; da população e agradeceu ao exército ;por ter cumprido com suas promessas;. ;Mubarak foi obrigado a sair pela vontade do grande povo egípcio e é resultado de uma política de injustiça e de corrupção;, afirmou à agência France-Presse o porta-voz Jamil Abu Bakr. ;Esta deve ser uma lição para muitos regimes árabes que utilizam os mesmos métodos contra seu povo.; Por sua vez, Amr Mussa, secretário-geral da Liga Árabe, anunciou na TV egípcia que abandonará o cargo. ;Deixarei a Liga Árabe nas próximas semanas;, revelou. ;O que ocorreu hoje (ontem) no Egito foi uma revolução branca;, emendou.
Por meio do microblogue Twitter, Wael Ghonim ; o diretor do Google que ficou 12 dias atrás das grades ; expôs sua alegria em várias mensagens. Tão logo foi divulgada a notícia da renúncia de Mubarak, ele escreveu: ;Bem-vindo de volta, Egito;. O homem que iniciou a revolução no país sugeriu que o dinheiro supostamente roubado pelo ex-presidente deveria ser revertido para as famílias dos ;mártires; e para reconstruir o Egito.
Orgulho
Emocionada, Aliaa admitiu estar ;muito orgulhosa; e disse não se importar com o poder concentrado em uma junta militar. ;Por 27 anos, por toda minha vida, tive um único presidente. Agora, não posso acreditar que veremos a democracia. Vamos eleger nosso presidente e viver em liberdade, é como se fosse um sonho;, comemorou a jornalista. ;Eu não acredito que os militares pretendam deter o poder por muito tempo.; Na Praça Tahrir, o webdesigner Tarek Shalaby, 26 anos, mal esperou a pergunta do Correio e desabafou: ;Você viu nossa revolução, como ela é extremamente bonita?; Ele contou que o povo celebrou o fim da era Mubarak com fogos de artifício, danças e cantos. ;Havia felicidade em cada canto dessa praça;, descreveu. Shalaby ainda não sabe como ficará o país nas mãos de uma junta militar. ;Eles prometeram destituir o Parlamento e trabalhar em prol da democracia. Se o fizerem mesmo, será lindo;, concluiu.
Nadeem acredita que o Egito se libertou de um ;regime brutal;. ;Estamos muito orgulhosos pelo que fizemos. Provamos que nada é impossível. Somos um país mais forte e livre;, afirmou, com a voz trêmula. De acordo com o estudante, o poder do povo falou mais alto. ;O exército vai se responsabilizar pela segurança, pela transição e pelas eleições, até que tenham um governo civil. Isso é importante;, elogiou. Ele garante que ninguém teme o Conselho Supremo das Forças Armadas. ;Os militares estavam ao lado dos manifestantes;, lembra.
Eu acho...
;Hosni Mubarak é um ditador, um tirano. Ele nunca foi nosso presidente. Nós queremos que os militares controlem o poder, nesse período de transição. Em breve, teremos uma nova Constituição, um novo Parlamento e, então, teremos um novo presidente;
Aliaa Hamed, 27 anos, jornalista, moradora do Cairo
;Oh, meu Deus, não ter mais Mubarak no poder é simplesmente maravilhoso! Tenho 26 anos. Não sei o que é ter outro regime, além desse governo corrupto. Estou orgulhoso por termos derrubado Mubarak. Estamos virando uma nova página no Egito;
Tarek Shalaby, 26 anos, webdesigner, morador do Cairo
Novo governo enfrenta desafios
Tatiana Sabadini
[FOTO2]Com a saída de Hosni Mubarak, o poder no Egito está nas mãos dos militares. As Forças Armadas contam com o apoio e o respeito da população, mas deixam dúvidas se devem promover as reformas democráticas, aclamadas pelos manifestantes. O Conselho Supremo das Forças Armadas anunciou que não deve abolir uma autoridade civil no futuro ou se voltar contra a vontade do povo. Os novos comandantes do país tentam se manter neutros em meio à crise e declaram que ficariam no poder apenas durante o período de transição no país. O mundo e a população do Egito aguardam, atentamente, os próximos passos do novo governo.
Os chefes militares enviaram quatro comunicados diferentes ontem. Nos três primeiros, divulgados antes da renúncia de Mubarak, eles garantiram a realização de eleições em breve e prometeram retirar o estado de emergência que vigora há 30 anos no país, depois do fim das manifestações. O Conselho também pediu que a vida no Egito volte ao normal e fez uma advertência contra qualquer ataque à segurança do país.
Economia
As Forças Armadas devem enfrentar outros desafios, além de manter a ordem. O governo de transição precisa criar medidas para garantir que a economia não entre em colapso. O controle do novo processo político é essencial, a fim de que os desejos da população sejam atendidos e um governo autoritário não volte ao poder. Os militares sempre se mantiveram acima de qualquer mandatário e gozam de uma imagem positiva entre a população.
No início da crise no Egito, as Forças Armadas permaneceram na sombra, atentas, mas sem se manifestar. Depois de mais de duas semanas de protestos, o Conselho Supremo das Forças Armadas se reuniu pela terceira vez na história do país, anteontem, para tomar uma posição. A pressão internacional, especialmente dos Estados Unidos, pode ter forçado uma atitude dos militares. Somente o governo norte-americano investe mais de US$ 1 bilhão por ano nas tropas egípcias.
O líder da junta militar que comandará o país é Mohamed Hussein Tantawi, 75 anos, um forte aliado de Mubarak. Ele ocupa o cargo de ministro da Defesa desde 1991 e foi o único sobrevivente a diversas mudanças no governo. Conhecido como o ;poodle de Mubarak;, Tantawi compareceu às manifestações para pedir que a população terminasse com os protestos. O comandante participou de três conflitos contra Israel, inclusive da Guerra dos Seis Dias, em 1967. Em uma correspondência da diplomacia americana, divulgada pelo site WikiLeaks, o militar é definido como ;alguém reservado, cordial e charmoso, porém resistente a mudanças;. O comandante, segundo o departamento de Estado americano, estaria comprometido a manter o acordo de paz com Israel.
ANÁLISE DA NOTÍCIA
Uma revolução do povo
Foi uma revolução genuína, que teve a cara da juventude. Começou pela internet, quase de forma despretensiosa, por meio de Wael Ghonim ; o diretor do Google chegou a ficar preso por 12 dias. Ganhou força e foi brutalmente reprimida pelo regime de Hosni Mubarak. A polícia passou a disparar munição viva contra os manifestantes, perseguiu sistematicamente os jornalistas e, ante a condenação internacional, desapareceu das ruas. Deu lugar a uma horda de simpatizantes do presidente que, montados a cavalo e a camelo, protagonizaram uma bizarra batalha épica na Praça Tahrir.
Acossados e massacrados, os manifestantes não perderam o brio. Dia após dia, reuniram-se em Tahrir e fizeram com que o mundo sentisse suas dores. A comunidade internacional pressionou Mubarak, que em 18 dias se transformou de um presidente com arroubos faraônicos em um líder desmoralizado e sem controle da crise política. A juventude egípcia provou que a voz do povo prevalece, ainda que sejam necessários sacrifício e uma boa dose de persistência. Pôs na rua um presidente que violou os direitos civis e se apegou ao poder, contrariando a vontade popular. O sucesso da revolução egípcia pode representar uma séria ameaça a líderes de regimes autoritários de países árabes. As mudanças podem estar apenas no começo.