Renata Tranches
postado em 01/05/2011 05:15
O legado de João Paulo II para a Igreja Católica dá provas de que está longe de se esgotar. Mais de seis anos após sua morte, o papa mais popular da história recente do catolicismo será beatificado hoje, e coloca a Igreja novamente no centro das atenções mundiais ; com milhares de peregrinos no Vaticano, visitantes ilustres e polêmicos e milhões de espectadores assistindo pela tevê. Após uma sequência de escândalos de abuso sexual envolvendo padres, e agora chefiada por um líder muito mais reservado e discreto, a Santa Sé vê na iminente santificação de João Paulo II uma chance de se aproximar do rebanho e conquistar novos fiéis. O processo de canonização do polonês Karol Wojtyla não pulou etapas, mas foi iniciado logo após a morte, sem observar os cinco anos tradicionalmente guardados. A pressa em dar aos católicos um santo que tantos conheceram em vida e passaram a admirar, além de fortalecer a instituição, conferirá a Bento XVI aquela que pode vir a ser a grande marca de seu pontificado ; ter feito santo o papa João Paulo II.Dono de carisma incontestável e condutor de uma guinada conservadora na fé católica, João Paulo II conquistou fiéis, influenciou líderes e determinou rumos para a política mundial em seu pontificado. Tanto tempo depois de sua morte, a santificação ajudará a Igreja Católica a enfrentar desafios que vão da acirrada concorrência entre confissões religiosas à descrença cada vez maior entre os cristãos, segundo especialistas e religiosos ouvidos pelo Correio.
O padre Gerald Fogarty, professor de cristianismo da Universidade da Virgínia (EUA), vê com apreensão o afastamento dos católicos, que não querem discutir profundamente os problemas de sua religião. ;Um terço dos fiéis norte-americanos deixaram a Igreja nos últimos 30 anos. E isso me preocupa muito;, observou, acrescentando que a maioria não quer ouvir críticas, e sim venerar ícones, como João Paulo II. Isso teria motivado a aceleração do processo de beatificação, que sobrepõe as virtudes pessoais do papa polonês a questões controversas do Vaticano.
Segundo o professor de história das religiões André Chevitarese, da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), a redução do rebanho não é preocupação apenas do catolicismo, mas das igrejas, independentemente da denominação. Para ele, estaria ligada aos valores racionais herdados do movimento iluminista, que se tornam cada vez mais universais.
Esse motivo seria até mais importante do que a sucessão de escândalos de abuso sexual envolvendo religiosos. Para Chevitarese, o Vaticano tem sido bem-sucedido na medida em que consegue mostrar que são questões pontuais. ;O argumento é demonizar o indivíduo que praticou o ato (de pedofilia). É lembrar que o demônio existe e, assim, reforçar a fé;, afirma o professor, autor de Cristianismos ; questões e debates metodológicos.
O problema, segundo ele, é que, como não há um líder tão carismático e popular quanto João Paulo II, questões como a pedofilia passam a ganhar mais atenção. A santificação permite que se retome por um período a imagem e as informações sobre um papa extremamente carismático, enquanto outras questões ficam adormecidas.
A tese ganha reforço do professor de história da Igreja Católica da Universidade Estadual Paulista (Unesp) Ivam Manoel, para quem João Paulo II era um homem dotado de fé inabalável. O estudioso, no entanto, vê o rito de canonização também como um processo político, vinculado a diversos interesses da Santa Sé. ;A antecipação do processo foi, sim, um gesto político visando ao fortalecimento institucional da Igreja.;
Santo vivo
Nem todos concordam que a decisão de Bento XVI tenha sido política. Religiosos garantem que será importante para os católicos ter como exemplo um santo que conheceram enquanto vivo, e não apenas aqueles que viveram em uma época distante. ;O próprio João Paulo II defendeu, e fez isso durante seu pontificado: que as pessoas conheçam seus santos;, argumenta o professor de teologia Fernando Altemeyer, da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP), lembrando que o pontífice também acelerou o processo de canonização de madre Teresa de Calcutá.
Todos concordam, porém, que a santificação de João Paulo II não tardará. Segundo as regras estritas da Igreja Católica, faltará apenas a comprovação de outro milagre com intercessão de João Paulo II para sua santificação. ;Ele é conhecido no mundo inteiro, então é provável que apareça em breve esse novo milagre;, acredita Altemeyer. Milhares de pessoas já enviaram a um site do Vaticano testemunhos de supostas graças obtidas por meio de orações, pedidos e invocações ao papa polonês. No total, 270 casos foram selecionados para estudo. Se depender de Bento XVI, a santificação ocorrerá o mais rápido possível, argumenta Chevitarese. ;Ele seria lembrado como aquele que santificou João Paulo II. Sem dúvida, seria uma marca extremamente positiva para esse pontificado.;
Personalidade incômoda
Na beatificação do mais político dos papas, não poderia faltar uma polêmica diplomática ; e ela veio com a presença do ditador do Zimbábue, Robert Mugabe, que desembarcou ontem em Roma especialmente para assistir à cerimônia. ;O Zimbábue tem relações com a Santa Sé, não temos nada a esconder;, declarou o porta-voz do Vaticano, Federico Lombardi. Como a União Europeia veta o ingresso de Mugabe, o governo italiano teve de conceder autorização especial para o trânsito do ditador.