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Excêntrico, o ditador líbio Muamar Kadafi moldou uma ideologia própria

postado em 28/08/2011 08:00
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A história de Muamar Kadafi, hoje com 69 anos, começa com uma revolução e pode terminar da mesma forma. Em 1969, o jovem oficial de 27 anos conseguiu destronar um rei e tornar-se líder, diante de uma multidão desunida. Ele não tinha o apoio do povo, assumiu um país com raízes tribais, sem organização social moderna. Estabeleceu um Estado sem constituição, um governo sem chefe, com base em uma ideologia sem contornos claros. Durante as quatro décadas em que exerceu o poder, ele precisou se recriar no cenário internacional, mas não soube conter o desejo da população por mudança. ;Cachorro louco;, como era chamado por Ronald Reagan, excêntrico, arrogante, pragmático, o líder líbio não foi um ditador qualquer. Kadafi não se encaixa em um único figurino.

Quando ainda era criança e cuidava da pastagem no deserto de Sirte, a Líbia era um país com destino incerto. A independência da Itália acabava de ser proclamada, em 1951, e o líder de uma organização islâmica, Sayyid Idris Al-Sanusi, subiu ao trono com o título de Idris I. Fraco, o rei não tardou a sofrer um golpe. Em 1; de setembro de 1969, à frente dos camaradas de farda, o capitão Kadafi conseguiu derrubar a monarquia. Ele não era o oficial mais inteligente, nem era o mais importante da academia militar, mas tinha força suficiente para sair na frente. Na época, se inspirava nas ideias do revolucionário argentino-cubano Ernesto Che Guevara e nas do presidente egípcio, Gamal Abdel Nasser, pai do nacionalismo pan-arabista.

O jovem carismático foi escolhido entre seus companheiros para liderar a mudança no país. A população, formada por tribos, não apoiava nenhum dos lados. Não era patriótica, mas também não estava satisfeita com a monarquia. A Líbia tinha acabado de descobrir suas reservas petrolíferas e, com uma boa estratégia, Kadafi conseguiu tirar proveito da economia. Investiu em serviços sociais gratuitos, especialmente na educação. Formou um governo composto por parentes e amigos e estabeleceu uma espécie de Constituição não escrita, o famoso Livro Verde, coletânea de pensamentos, que se pretendia uma fusão entre socialismo e islã.

Kadafi moldou a própria ideologia. Revelou-se um governante inteligente em uma região do mundo na qual imperava a desunião, e onde a melhor forma de obter o poder era sem usar a força ou a imposição. A Líbia não seria governada por um presidente, e sim ;pelo povo;. O papel do líder seria o de um mero representante. O Livro Verde criou o conceito da ;Jamhiriya;, um sistema político em que o poder é exercido por meio de milhares de comitês populares espalhados pelo país. Para o coronel, essa seria a democracia perfeita. Eleições poderiam levar a uma ;ditadura;, com as decisões a cargo de uma parte da população. Sem uma sociedade civil organizada, sem partidos políticos, com um povo que rejeitava as corporações, sem ser um Estado propriamente dito, ele conseguiu organizar o caos e permanecer no poder.

Exótico e exuberante
O líder líbio tentou vender seu modelo político para outros países árabes, nos anos 1970, mas não teve sucesso. Com o poder dos petrodólares, Kadafi controlava o país sem controle. Não conseguiu formar o Exército que desejava, e recrutou mercenários africanos para garantir a segurança pessoal, além da mão de ferro exigida por uma ditadura. O coronel também resolveu apoiar movimentos revolucionários ao redor do mundo. Ajudou, por exemplo, o movimento contra o apartheid na África do Sul, com treinamento e armas. Com isso, ganhou a amizade de Nelson Mandela, que chegou a desdenhar dos que o criticavam por isso: ;Aqueles que ficam irritados com a minha amizade com Kadafi podem pular na piscina para se refrescar;, dizia.

A trajetória do ditador ficou marcada pelas excentricidades. Em muitas ocasiões, especialmente em reuniões entre chefes de Estado, ele se destacava na multidão. As roupas exuberantes de beduíno, os óculos escuros de marca, as cirurgias plásticas e a tenda luxuosa, que por vezes era montada do lado de fora de um hotel. O líder era conhecido por estar sempre cercado por guarda-costas femininas. Vestidas com fardas de camuflagem e calçando botas da moda, elas ficaram conhecidas como a ;guarda das amazonas;, todas prontas a levar um tiro no lugar do protegido.

Os gastos da família, a troca de esposas, os nove filhos e as faladas enfermeiras ucranianas acompanharam sua história de perto. A prole recebeu uma boa educação, a maioria estudou fora do país. Saif Al-Islam, hoje com 38 anos, foi apontado com sucessor e acabou transformado em porta-voz do governo no meio da revolução. Um dos filhos mais novos, Mutasim, 33 anos, tenente do Exército e comandante de uma unidade de segurança, chegou a organizar um golpe contra o próprio pai, mas foi perdoado. O coronel perdeu dois filhos por conta de conflitos: um em 1986 e outro em maio último.

Kadafi nunca mediu palavras. Com a mesma fúria dos discursos contra a democracia, ele defendia suas crenças diante dos outros líderes. Como se tivesse um presságio sobre a Primavera Árabe, Kadafi chegou a interromper a reunião de 2008 da Liga Árabe. Brigou com os colegas e criticou-os por ;não terem feito nada; na invasão do Iraque e na prisão de Saddam Hussein. ;Vocês serão os próximos!”, profetizou diante de uma plateia assustada.

O caminho diplomático de Kadafi começou a se desviar quando ele investiu em grupos armados palestinos e nos separatistas irlandeses do IRA. A Líbia foi acusada de se envolver em um duplo atentado aos aeroportos de Roma e Viena, em 1985, e no ataque a uma discoteca de Berlim frequentada por soldados americanos, em 1986. Os EUA revidaram com bombardeios em Trípoli e em Benghazi, no qual o líder líbio perdeu uma filha (adotiva) de 4 anos. Nos últimos dias, os rebeldes que tomaram a capital descobriram que ela pode estar viva. A versão sobre a morte da menina alimentou nova revanche, consumada quando uma bomba derrubou um avião da companhia americana PanAm sobre Lockerbie, na Escócia. O atentado matou 270 pessoas, e a Justiça britânica acusou agentes líbios.

Enquanto Kadafi mantinha o poder, era visto como inimigo pelo mundo ocidental. De início, negou-se a entregar os acusados pela tragédia de Lockerbie. Em 1992, a ONU impôs sanções diplomáticas e econômicas ao país. O ditador resistiu. Encurralado e com a economia em crise, assumiu a culpa. Não apenas entregou os suspeitos, como indenizou as vítimas do atentado.

Depois dos ataques de 11 de setembro de 2001, Kadafi se juntou à guerra contra o terror e abriu o comércio para a Europa. Convidado para uma reunião do G-8, apertou a mão de Barack Obama. Na América Latina, uniu-se aos governos de esquerda, especialmente aos da Venezuela e do Brasil. Ele esteve quatro vezes com o ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva, que o chamou de ;meu irmão, meu amigo;. Hugo Chávez ainda é um de seus defensores. Kadafi também investiu no próprio continente. Forrado de petrodólares, conquistou respeito na União Africana (UA). Em 1999, promoveu em sua cidade natal, Sirte, uma cúpula com os 53 colegas do bloco. A Líbia contribui com 20% a 30% do orçamento da UA. Mas, na Liga Árabe, nem sempre foi bem quisto. Entre outras coisas, por ideias como a de propor a paz entre israelenses e palestinos colocando ambos em um só Estado, um delírio ao qual deu o nome de Isratina.

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