A morte do coronel Muamar Kadafi e a queda de seu regime ; o terceiro desde o início das manifestações que ficaram conhecidas como Primavera Árabe ; mostraram a força da revolta popular e reiteraram o desafio nas difíceis tarefas de consolidar novos governos e de criar estabilidade política. Nos países nos quais ela ainda toma as ruas, a missão é conseguir as mudanças sem que as demandas se transformem em guerras civis ou em massacres. Analistas consultados pelo Correio consideram a experiência na Líbia determinante para a forma como as grandes potências procederão com outras nações. Eles veem a captura do coronel como um recado aos demais ditadores.
No esforço em dar continuidade à transição, a Tunísia, precursora do movimento, volta a assumir papel pioneiro na região e realiza hoje as primeiras eleições pós-revolução e democráticas em um quadro totalmente alterado. Os tunisianos escolherão os integrantes da nova Assembleia Constituinte, responsável por traduzir os pedidos por liberdade, dignidade e direitos humanos em uma nova Carta. Em um comunicado divulgado anteontem, a alta comissária dos Direitos Humanos das Nações Unidas, Navi Pillay, destacou o papel de influência do país. ;Nossa grande esperança é de que a Tunísia, mais uma vez, aja como um modelo de inspiração para outros países daquela e de outras partes do mundo, na condução dessas eleições, que ajudarão a moldar esse novo cenário político e social.;
As eleições na Tunísia são as primeiras depois de mais de 20 anos do regime de partido único do ex-presidente Zine El-Abidine Ben Ali, deposto em 14 de janeiro, menos de 30 dias após o início da revolta popular. No mês seguinte, foi a vez de o Egito eclodir em manifestações, imortalizadas nas imagens da Praça Tahrir abarrotada por uma multidão que pedia a saída do presidente Hosni Mubarak ; o mandatário renunciou ao cargo em 11 de fevereiro. O país foi assumido pelo Conselho Supremo das Forças Armadas, e o clima de tensão perene fez os manifestantes voltarem às ruas. As eleições legislativas, marcadas para setembro, foram adiadas para 28 de novembro. A junta militar que governa o país tem sido alvo de várias críticas, pela falta de autoridade e pela ineficiência em conter a onda de violência entre cristãos coptas e muçulmanos.
Em artigo publicado na influente revista Foreign Affairs, em junho, o analista Jack Goldstone ; diretor do Centro para Política Global da Universidade George Mason (Virgínia, EUA) ; havia antecipado que para Egito, Túnisia e, possivelmente, Líbia, o período de transição para um sistema democrático estável não seria rápido e poderia causar ;desapontamentos;. ;Mesmo após revoluções pacíficas, em geral, pode levar meia década para qualquer tipo de regime estável se consolidar;, previu. Goldstone ponderou que esses três países enfrentam mudanças abruptas de governo e reversão de políticas ; semelhantes às ocorridas pelas Filipinas e em países do Leste Europeu após suas revoluções.
Influência
As mudanças na Líbia, que culminaram com a primeira morte de um chefe de governo dentro da Primavera Árabe, deverão influenciar a Síria e o Iêmen. Na opinião do vice-presidente de estudos do Carnegie Endowment for International Peace (Washington), Thomas Carothers, a derrota de Kadafi já é simbólica pelo simples fato de se tratar do mais longevo ditador no mundo árabe. Além disso, explica, o Conselho Nacional de Transição (CNT, o novo governo rebelde) poderá cessar as atividades militares e se focar na tentativa de estabelecer um nível de estabilidade na Líbia. Tal cenário ajudará os países vizinhos a voltarem suas atenções para as transformações dentro de suas próprias fronteiras.
Ainda segundo Carothers, as imagens da captura e da morte de Kadafi enviaram uma mensagem para outros ditadores pelo mundo. ;Esse recado pode ser interpretado de duas maneiras: ou se seguram no poder a qualquer preço ou se afastam enquanto é tempo. De qualquer maneira, é difícil imaginar que os presidentes Bashar Al-Assad, da Síria, e Ali Abdullah Saleh, do Iêmen, não serão afetados por elas.;
Para Salem Nasser, analista da Fundação Getulio Vargas (FGV), Kadafi já não era um ;aliado de sustentável importância na região; para o Ocidente, como foi o caso de Mubarak, no Egito ; cuja queda ele considera a mais importante até agora. Mas a maneira como as potências procederam no caso da Líbia já influencia as decisões do Conselho de Segurança da ONU sobre a Síria. Todas as vezes em que tentaram votar resoluções duras contra Damasco, nações como os EUA e a França enfrentaram resistência da Rússia e da China. Moscou e Pequim temem uma repetição da incursão militar na Líbia, que ajudou os rebeldes a tomarem o poder, mas promoveu um banho de sangue no país. ;Além disso, qualquer novidade na Síria tem mais impacto do que em outros países, por conta de sua influência na região;, afirmou Nasser.
Autoimolação de jovem foi o estopim para a revolta
Menos de um mês depois do início da revolta popular, que teve como estopim a autoimolação do jovem Mohamed Bouazizi, o então presidente da Tunísia, Zine El-Abidini Ben Ali, deixou o cargo e o país. Em 17 de dezembro do ano passado, Bouazizi ; um comerciante de 24 anos ; ateou fogo ao próprio corpo em Sidi Bouzid, 265km ao sul da capital, Túnis. Desempregado, ele protestava contra a proibição da polícia de vender suas frutas e verduras na rua. Morreu 15 dias depois. O ato de Bouazizi inspirou milhares de tunisianos, que foram às ruas para exigir empregos para os jovens e protestar contra a falta de liberdade. A onda de revoltas ultrapassou as fronteiras do país e atingiu várias outras nações, com manifestações inspiradas nas mesmas reivindicações.
29,6 mil
Total aproximado de mortos na Líbia, na Síria, na Tunísia, no Egito e no Iêmen, desde o início das revoluções pró-democracia