Discreto, embora muito falante, padre Flávio é um dos dois cerimoniários do megatemplo. Ou seja, é ele quem cuida de todos os detalhes das celebrações ali realizadas. Aos 35 anos, o diocesano tem acesso livre a espaços fortemente vigiados. Basta um aceno para circular livremente pelos pátios cercados pela Guarda Suíça e por altos muros. O serviço aos cardeais no altar valeu a ele o respeito da cúpula da Igreja.
No fim da tarde de ontem, exatamente 24 horas após Bento XVI deixar o Palácio Apostólico, padre Flávio falou ao Correio em um lugar escolhido por ele: uma passarela sobre um viaduto, com vista para o alto da basílica. ;Eu moro ali;, contou, entusiasmado, apontando para uma janela no topo de um prédio ao lado da Casa Santa Marta, onde os cardeais ficam hospedados durante o conclave.
No anonimato, esse brasileiro participou como poucos dos momentos mais importantes da Igreja na última década. Cantou o Evangelho na tradicional Missa do Galo de 2004, a última noite natalina do falecido papa João Paulo II. Em 6 de janeiro daquele mesmo ano (ele não esquece a data), serviu no altar em cerimônia celebrada pelo então cardeal alemão Joseph Ratzinger. Foi apenas a primeira das 174 ocasiões em que estiveram juntos. ;Há uma margem de erro para um pouco mais ou um pouco menos;, pondera.
Padre Flávio estava no meio da multidão acomodada na Praça de São Pedro quando foi anunciada a morte de João Paulo II. De volta ao seminário, quase à meia-noite, ouviu do superior que havia sido convocado para organizar a missa de início das exéquias do papa. Foi ele quem segurou a bacia com a água benta aspergida no corpo. ;Meus pais me viram na televisão naquele dia;, lembra, contente.
A partir dali, o potiguar não arredou mais o pé da Basílica. Cuidou da liturgia da cerimônia de abertura do conclave que elegeu Bento XVI e, na missa de posse do alemão, foi o primeiro a comungar das mãos dele. Pouco antes, entoara em latim, voltado para o novo pontífice, a passagem do Evangelho de São Mateus que diz: ;Tu és Pedro e sobre essa pedra edificarei a minha igreja;. ;Meu Deus do céu!”, suspira ele, recordando a cena.
Incrédulo
Neste ano, na segunda-feira de carnaval, padre Flávio se preparava para subir ao presbitério quando o avisaram do comunicado feito por Bento XVI, de que deixaria o cargo. Não acreditou. Pensou ser um ;mal-entendido de jornalistas;. Ao fim da missa, entrou na sacristia da Basílica e ;tudo estava consumado;, como descreve. ;Ouvia falar isso por aqui de vez em quando, mas não dava crédito, parecia algo utópico;, comenta.
O olhar e o ritmo dos passos de Bento XVI acusavam cansaço nos últimos meses de pontificado. ;Era um cansaço que nós pensávamos ser da própria idade, mas agora sabemos que também tinha a ver com o peso das preocupações;, completa. É uma fase, emenda o religioso, de renovar as esperanças. ;Os escândalos e as dificuldades existiram e deixaram uma marca terrível no coração da Igreja e da humanidade.;
A esperança à qual se refere padre Flávio vem da convicção, alimentada por ele, de que ;os filhos da Igreja são sujeitos a erros, mas a Igreja segue santa e imaculada;. ;É preciso que seja resgatada a dignidade de tantos cristãos e sacerdotes que continuam a dar a vida com total dedicação e amor à causa do Evangelho;, defende ele, demonstrando clara preocupação em preservar a imagem dos religiosos, desgastada por tantas denúncias de escândalos.
Padre Flávio está do lado dos que aplaudem o gesto de Bento XVI e, superado o susto da notícia da renúncia, passou a admirá-lo ainda mais. Na última quinta-feira, o potiguar acompanhou o instante em que o pontífice deixou o Palácio Apostólico em direção ao helicóptero que o levaria até Castel Gandolfo. O motorista do carro, relembra, chorava copiosamente. O pelotão da Guarda Suíça se despedia em clima fúnebre.
O coração do brasileiro, com tantas histórias para contar sobre Bento XVI, ficou apertado. ;Olhei nos olhos daquele homem e fiz o sinal da cruz;, conta. Para chegar à Praça de São Pedro a tempo de ver o helicóptero sobrevoando, o padre tentou cortar caminho pela porta de bronze do Vaticano. Foi barrado por um guarda suíço. ;Está fechada, não temos mais papa;, ouviu dele. A ficha caiu, e com ela as lágrimas. ;Chorei como criança;, confessa.
Como o mundo inteiro, padre Flávio quer saber quem será o novo papa. Tem alguns nomes prediletos na ponta da língua, mas sustenta a tese de que ;o Espírito Santo é quem sabe;. O garoto criado em Acari, terra de dom Eugênio Sales, testemunhou e seguirá testemunhando os rumos de uma instituição milenar. Por enquanto, como ele mesmo diz, está órfão, mergulhado em uma ;solidão animada pela esperança;.