Agência France-Presse
postado em 17/05/2013 10:23
Buenos Aires - O ex-ditador argentino Jorge Videla, que estava detido em uma prisão, morreu nesta sexta-feira aos 87 anos sem ter demonstrado qualquer arrependimento pelos crimes contra a humanidade cometidos no regime militar (1976-83) e pelos quais foi condenado duas vezes à prisão perpétua, além de uma pena de 50 anos.
"Assumo em plenitude minha responsabilidade militar pela atuação do exército no marco da guerra contra o terrorismo com total prescindência de meus subordinados, que se limitaram a cumprir minhas ordens e aos quais vou acompanhar na prisão como presos políticos até que o último deles recupere sua liberdade", disse em um tribunal na terça-feira passada, em sua última aparição pública.
Ele vivia no ostracismo em uma cela da prisão de Marcos Paz (periferia de Buenos Aires), onde escrevia suas memórias e rezava ao lado de uma modesta cama debaixo de um crucifixo, com quase nenhuma conexão com o mundo exterior. Na mesma audiência, ele voltou a não reconhecer a justiça civil, como sempre fazia ao enfrentar os juízes desde que em 1985, dois anos depois do fim da da ditadura, foi condenado à pena máxima no histórico julgamento das Juntas Militares.
O ex-comandante das Forças Armadas voltou ao banco dos réus acusado pelo Plano Condor de repressão na América do Sul nos anos 70, diante de juízes civis ante os quais ficava erguido com a pose marcial típica de um general da antiga formação prussiana do exército argentino. "Digamos que eram 7 mil ou 8 mil as pessoas que deviam morrer para ganhar a guerra contra a subversão; não podíamos fuzilá-las. Tampouco podíamos levá-las à justiça", disse Videla em uma entrevista em sua cela ao jornalista Ceferino Reato, segundo o livro "Disposição Final".
Videla recebeu duas condenações de prisão perpétua e outra de 50 anos por crimes contra a humanidade e roubo de bebês entre 1976 e 1981, os piores anos da ditadura, que deixou 30.000 desaparecidos, segundo organizações humanitárias. O ex-general, que governou com a cruz e a espada como um moderno cruzado, disse sobre os crimes que "estávamos de acordo (os militares) que era o preço a pagar para vencer a guerra e precisávamos que não fosse evidente para que a sociedade não percebesse".
"Por isto, para não provocar protestos dentro e fora do país sobre a campanha, se chegou à decisão de que estas pessoas desaparecessem", disse o ex-ditador. Publicado o livro, Videla disse que a confissão foi mal-interpretada, mas Reato, que não recebeu autorização para entrar na cela com um gravador, disse que as anotações foram lidas e avaliadas pelo entrevistado antes da publicação.
[SAIBAMAIS]"Combatemos a subversão marxista", afirmou à justiça ao apontar que seu inimigos eram as guerrilhas dos Montoneros (peronista) e do ERP (guevarista), em um momento de Guerra Fria entre Estados Unidos e União Soviética. As sentenças contra ele revelaram a existência de um "plano sistemático de eliminação de opositores", segundo a justiça argentina, como ativistas políticos, sindicais, estudantis, sociais, religiosos da Teologia da Libertação, artistas e intelectuais, milhares deles desaparecidos.
Desmantelados os grupos armados, isolados e sem apoio popular, a repressão prosseguiu com militantes, amigos e suspeitos, além de parentes e pessoas próximas. Assim foram vítimas as freiras francesas Alice Domon e Leonie Duquet, o bispo católico Enrique Angelelli, a estudante sueca Dagmar Hagelín, as comissões sindicais inteiras das montadoras Ford e Mercedes Benz e até diplomatas do próprio regime, como Elena Holmberg e Héctor Hidalgo Solá.
Ao contrário de outros ditadores como o paraguaio Alfredo Stroessner e o chileno Augusto Pinochet, Videla não tem partidários e nenhum partido político reivindica seu legado na Argentina, com exceção de minúsculos grupos de ex-militares ou seus familiares. Videla tinha 1,80 metro, sempre muito magro, de grandes olhos escuros, bigode e cabelo engomado.
Lia os discursos com voz grave e estridente, mas um tique nervoso fazia pulsar as maçãs do rosto em público, enquanto esfregava as mãos em um gesto de incômodo ao enfrentar uma vida política de relações, fora da rotina de um quartel. Foi o comandante da tomada de poder que derrubou a presidente Isabel Perón em 1976, suspendeu a Constituição, proibiu os partidos políticos e determinou a censura na rádio e TV.
Videla governou aliado ao grupo civil conhecido como ;Os Chicago Boys; e deu todo o poder administrativo a um economista de uma família da aristocracia, José Martínez de Hoz, admirador do Prêmio Nobel Milton Friedman. Por ordem sua e dos generais, automóveis sem placa e com oficiais encapuzados sequestravam militantes e os levavam para atos de tortura em quase 500 centros clandestinos de detenção espalhados no país.
Fotografias e vídeos no YouTube mostram dois momentos chaves: ao entregar em 1978 o troféu da Copa do Mundo à seleção argentina e quando deu um abraço forçado no ditador chileno Augusto Pinochet, após a mediação do Vaticano que impediu uma guerra na fronteira no mesmo ano entre os dois países. Videla ordenou que livros fossem queimados em um terreno baldio de Sarandí.
Alinhou o país com os Estados Unidos, mas teve problemas com o então presidente Jimmy Carter, que criticou as violações dos direitos humanos, e também por ter ignorado o embargo de cereais contra a União Soviética devido à pressão dos influentes exportadores agrícolas argentinos.
Sem carisma nem aspirações políticas, o ex-general interferiu na Suprema Corte para nomear juízes submetidos a seu governo e instaurou um plano econômico com taxa de câmbio muito alta que entrou para a história como "la plata dulce", que permitia aos argentinos viajar repletos de dólares a Miami e comprar quantos eletrodomésticos desejassem.
Em 1981 cedeu o poder a Roberto Viola para iniciar uma lenta transição à democracia, mas o general Leopoldo Galtieri deu um golpe palaciano e desatou a triste história da guerra das Malvinas contra a Grã-Bretanha, em 1982.
Videla foi condenado à prisão perpétua ao lado do comandante da Marinha Emilio Massera, no histórico julgamento das juntas militares de 1985, que colocou no banco dos réus três das quatro juntas militares que governaram a Argentina entre 1976 e 1983.
Foi indultado em 1990 pelo ex-presidente Carlos Menem (1989/99) e voltou a ser detido em 1998, tendo sido condenado à prisão domiciliar pelo caso do roubo de bebês. Em 2010, a Suprema Corte de Justiça anulou os indultos.
O ex-ditador foi levado para uma prisão dentro de um quartel militar até que, finalmente, em 2008, foi levado para a prisão comum de Marcos Paz, onde estão detidos os condenados por crimes contra a Humanidade.