BUJUMBURA, 3 setembro 2013 (AFP) - Houve um tempo em que os pastores do Burundi recitavam poemas à vaca que levavam para pastar, antes que a guerra dizimasse o gado bovino deste pequeno país dos Grandes Lagos africanos. Desde então, o rebanho se recupera com dificuldade.
A civilização burundiense estava concentrada na pecuária. Antes da guerra civil (1993-2006), o rebanho bovino "tinha até 800 mil cabeças", lembra Eliakim Hakizimana, diretor-geral de Pecuária do Ministério da Agricultura do país.
Mas os 13 anos de conflito tiveram "consequências terríveis" para estes animais e, quando a maioria hutu e a minoria tutsi assinaram a paz, restavam apenas 300.000 cabeças.
Os rebeldes hutus atacavam as vacas, veneradas pela comunidade tutsi - tradicionalmente formada por criadores de gado - e se alimentavam delas durante a guerra, que deixou 300 mil mortos e arruinou a economia do país.
"Antes da colonização, antes da chegada do homem branco, por volta do final do século XIX, a vaca não era um animal doméstico qualquer no reino do Burundi", explica Adrien Ntabona, de 74 anos, ex-professor de etnologia da Universidade do Burundi.
"O pastor falava com a sua vaca, podia recitar sua linhagem. Declamava poemas para ela, diferentes à medida que a levava ao manancial, para pastar, ao curral ou para ordenhá-la", acrescenta.
A vaca burundiense, de chifres imponentes e patas finas, é da raça "ankole", como em toda a região dos Grandes Lagos. Tradicionalmente é considerada um exemplo de beleza. Para elogiar os belos olhos de uma mulher, por exemplo, se dizia que ela tinha "olhos de bezerro".
O tempo seguia o ritmo da criação de gado: nas manhãs era "a hora de pastar" e às tardes, "a hora da volta dos bezerros". E as vacas tinham até nomes próprios, que faziam referência à sua beleza ou temperamento: "Yamwezi" (a que descende da Lua), "Yamwaka" (a mais bela do ano) ou "Jambo" (a palavra).
= "Uma vaca com duas patas" =
"Quando se queria uma propriedade, um favor ou, inclusive, uma esposa, dava-se uma vaca", conta Pierre Nduwimana, um camponês de Matana (sul).
Leia mais notícias em Mundo
"Para o dote, por exemplo, eram dadas uma ou várias vacas, segundo a riqueza" do pretendente. E em troca, segundo uma expressão local, "se dizia que vínhamos buscar ;uma vaca com duas patas que tirasse água do poço e cortasse lenha;", em alusão à futura esposa.
"O Burundi instaurou a civilização da vaca", resume Ntabona. Este animal "era uma fonte de vínculos sociais". "Não eram tratadas como deusas, como na Índia, mas eram relativamente sagradas e deviam ser tratadas como tais", continua.
Até mesmo antes da guerra civil, após a colonização alemã e depois da tutela belga, a explosão demográfica e a diminuição drástica das terras para a pecuária perderam com este estilo de vida, o que muitos burundienses lamentam.
"Meu pai tinha vacas, assim como meu avô e meu bisavô, mas não posso mais ter um rebanho", lamenta Pierre, funcionário público. "Claro que me sinto culpado, como se tivesse traído meus pais", continua.
Desde o fim da guerra, o rebanho, que hoje chega a 600.000 cabeças, está se recuperando. Mas muitos não têm dinheiro para comprar uma vaca, que custa uns 1.000 dólares, uma fortuna em um dos países mais pobres do mundo.
No entanto, um plano para aumentar a população de vacas levou a distribuir 25.000 cabeças desde 2008, no âmbito de um programa estatal que pretende "modernizar o setor para que seja produtivo em leite, queijos e ração bovina", explica Hakizimana.
Emmanuel Nibaruta, um camponês de 35 anos, continua "dando graças a Deus" por ter-lhe dado sua primeira vaca: uma "Frísia" europeia que produz 16 litros de leite por dia, muitos mais que o litro diário de uma vaca "ankole". Mas o programa enfrenta um problema considerável: os criadores não têm onde processar ou vender o leite.
A única leiteria fechou no início da guerra civil e o leite é vendido por ciclistas que percorrem as ruas da capital a qualquer hora do dia.
"Isso nos desmotiva, pois somos obrigados a jogar o leite fora", lamenta Anicet, proprietário de uma fazenda. "Temos que nos orientar para uma pecuária rentável", reconhece Hakizimana. Mas "o caminho será longo".