Agência France-Presse
postado em 19/04/2014 16:35
Aracataca - Lembranças do menino superprotegido pelo avô e anedotas das duas únicas visitas que Gabriel García Márquez fez a Aracataca após ganhar o Nobel dominam as conversas dos vizinhos desta empoeirada cidadezinha colombiana, que viu nascer o escritor, hoje transformado em lenda.
Em Aracataca, que ao mesmo tempo é a Macondo insólita e cheia de realismo de "Cem anos de solidão", obra-prima de García Márquez, a morte do Nobel não se sente nas ruas em forma de luto ou tristeza assoladora.
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Vizinhos e turistas prestam homagens a García Márquez, falecido na quinta-feira aos 87 anos na Cidade do México, de forma mais alegre do que triste: alguns trazem nas roupas as flores amarelas que eram suas favoritas, outros lembram histórias de sua juventude, enquanto tomam cerveja, alguns cantam em sua homenagem e muitos visitam aquela que foi sua casa natal, transformada há anos em museu.
Aníbal Calle, vizinho de García Márquez de 95 anos, contou à AFP que sua primeira lembrança do escritor é de quando era "muito pequeno" e "a professora o levava pela mão para a aula". "O avô, que era coronel, o protegia muito em casa e só saía assim, para ir à escola", contou Calle, com os olhos postos do outro lado da rua, que dá para o frondoso pátio da casa do escritor.
"Aracataca é Macondo"
Calle lembra a Aracataca daquela época, no fim dos anos 1920 e começo dos 1930, como uma cidade "com muitos generais e coronéis", como o avô de García Márquez e tantos outros que aparecem em suas obras: Aureliano Buendía, de pé diante do pelotão de fuzilamento em "Cem anos de Solidão" ou o protagonista de "Ninguém escreve ao Coronel", que morre esperando sua pensão.
Elvia Vizcaíno compartilha uma anedota familiar da visita de Gabo à cidade em 1983, um ano depois de ganhar o Nobel. "Meu marido, que era mais conhecido como ;o russo; (el mono) Todaro, com algumas bebidas a mais, se aproximou de Gabo para pedir uma garrafa de rum. Não o deixou em paz durante os atos, o perseguiu por toda parte até que Gabo lhe pediu um papel para fazer um vale", relatou Vizcaíno. "Vale 10 garrafas de rum para o russo Todaro", diz a nota assinada por García Márquez, hoje guardada como um tesouro pela viúva.
"O melhor é que quando meu marido se deu conta de que não tinha onde cobrar o vale, perguntou a Gabo e ele lhe disse: em Estocolmo", contou Vizcaíno às gargalhadas, lembrando a forma de agir do escritor, com um dos tantos casos escondidos atrás das portas de latão das casas humildes de Aracataca. Muitas anedotas e lembranças como estas aproximam Aracataca da Macondo imaginária de García Márquez. "A maior parte das histórias dele são daqui. Macondo é uma figura literária, mas Aracataca é Macondo", afirmou Fabián Marriaga, em meio ao falatório dos vizinhos que se protegiam do sol abrasador em um pequeno armazém e que assentiam ou ouvi-lo falar.
O trem da prosperidade
Marriaga, ex-secretário de Cultura de Aracataca, foi um dos que promoveu, em 2007, a última visita de García Márquez à sua terra. "Um ato incrível, que lotou as ruas, ao qual veio gente de todos os lugares e no qual Gabo não quis que a polícia colocasse um cordão de segurança, mas que crianças da escola fizessem um corredor de homenagem por toda a rua", disse.
O Nobel chegou em 2007 a Aracataca a bordo do trem amarelo que mencionou também em seus escritos, circulando excepcionalmente por uma via que desde 1970 não presta serviços para o transporte de pessoas - unicamente de carvão - e por onde os vizinhos sonham que, em breve, chegue um trem turístico ligando Aracataca à cidade de Santa Marta, a 70 km de distância e banhada pelo mar do Caribe. "O trem amarelo é algo que desejamos, traria uma mudança, bem-estar e prosperidade com a chegada de mais turistas", afirmou à AFP Jakeline Massi, de 35 anos.
Com aproximadamente 46 mil habitantes, Aracataca atrai visitantes por ser a cidade natal de García Márquez, mas não em números consideráveis e os moradores explicam o fato por duas razões: há apenas quatro hospedarias que não chegam a ser hotéis e a conexão com Santa Marta não é direta. "Com o trem chegariam investimento, hotéis, trabalho. É algo que consideramos possível agora com a morte de Gabo, embora seja triste dizê-lo, que venha o trem e o turismo ganhe força", disse Dania Todaro, cujo pai, ;O Russo;, morreu em 1996 esperando ganhar as prometidas 10 garrafas de rum.