postado em 28/04/2014 08:40
Cidade do Vaticano - No silêncio de uma Praça São Pedro tomada por peregrinos exaustos, após uma madrugada em vigília, a fé faz barulho. Cansaço, sono, fome, desconforto, chuva fina e insistente: nada abala os fiéis. Nem mesmo o empurra-empurra e o inusitado bate-boca entre religiosos para garantir um bom lugar na missa histórica. A canonização de João Paulo II e João XXIII refletiu a disposição do rebanho a corresponder a um novo tempo do catolicismo.
Como antecipado pela Santa Sé, a cerimônia seguiu a liturgia diária com sobriedade. Bastante concentrado e sorrindo menos que de costume, o papa Francisco não quebrou protocolo. Fez uma homilia rápida e objetiva, evitando fugir do texto preparado com antecedência. A multidão o acompanhou anestesiada. Pela primeira vez, a Igreja tornava santos, ao mesmo tempo, dois pontífices. Não bastasse, um sereno e acessível Bento XVI reforçou o caráter inédito da celebração.
O ;domingo dos quatro papas;, como ficará conhecido esse domingo, começou com o tempo fechado. Garoava quando bispos do mundo inteiro disputavam lugar no presbitério. Não havia cadeira para todos. Também não coube toda a gente na praça, que ficou completamente tomada até a Via da Conciliação. O Vaticano, a partir de estimativa da polícia de Roma, divulgou que 800 mil pessoas participaram da missa, incluindo as que assistiram ao rito pelos telões espalhados nos arredores.
[SAIBAMAIS]A chuva e as previsões de que até 5 milhões de pessoas estariam na cidade acabaram inibindo fiéis, sobretudo os romanos. A festa maior foi dos poloneses, compatriotas de João Paulo II. Orgulhosos do agora santo, eles invadiram a praça, sentindo-se anfitriões: a cada 10 bandeiras que tremulavam, oito eram das cores vermelha e branca. Grupos de espanhóis e de brasileiros também se destacavam. Idosos, crianças, muitos jovens e famílias inteiras rezavam no coração da Igreja.
Procissão
Pontualmente às 10h (horário local), com o dia ainda amanhecendo no Brasil, o primeiro dos arrastados cânticos em latim anunciou a procissão de entrada do papa Francisco. Minutos antes, Bento XVI se posicionara próximo aos cardeais, sob aplausos emocionados. A pompa da cerimônia ficou por conta dos políticos, incluindo o presidente e o primeiro-ministro da Itália e representantes do governo polonês. Não havia brasileiros na lista de autoridades.
Logo no início da missa, após ter ido ao encontro do papa emérito para um abraço fraterno, Francisco leu a mensagem que inscrevia João XXIII e João Paulo II, oficialmente, no Catálogo dos Santos. Gritos de ;viva; ecoaram até um novo silêncio absoluto para a leitura dupla do Evangelho, em latim e grego. ;Mesmo quem não entende sente a emoção e consegue captar a mensagem. É algo inexplicável;, comentava o padre mineiro Clairisson Saraiva, 57 anos.
Chegava a hora de Francisco falar. Em pé, o pontífice argentino leu por oito minutos, com o característico tom de voz suave, em contraste com os gestos fortes, quase que compondo o cenário de um discurso simples e direto. Falou de João XXIII como ;o papa da docilidade ao Espírito Santo;, e de João Paulo II como ;o papa da família;, levando os fiéis ao delírio. Disse que ambos conheceram tragédias, mas não foram vencidas por elas. ;Mais forte, neles, era Deus;, frisou.
Por duas horas e oito minutos, a multidão inebriou-se de uma cerimônia sem extravagâncias e profunda, do ponto de vista litúrgico. Visivelmente esgotados, peregrinos se espremeram ainda mais no instante da comunhão. Ajoelhados ou se apoiando uns nos outros, muitos choraram ao receber a hóstia. Quando o papa deu a bênção final, o sol surgiu na praça. ;Estou encantada, não consigo falar;, desabou a mexicana Elisa Farias, 38.
Depois de saudar Bento XVI pela segunda vez e de passar 40 minutos cumprimentando autoridades, Francisco subiu no papamóvel e foi em direção ao povo, que não arredou o pé. Com palmas e cantos mais animados em inglês, a multidão o saudou em êxtase. Era o fim de uma manhã histórica, em pleno Domingo da Misericórdia. Selava-se a semana da Páscoa, tempo de renovação para uma Igreja que renova os esforços para caminhar mais próxima do povo.