Rodrigo Craveiro
postado em 13/08/2014 06:03
Dois dias depois da proibição da entrada de dois diretores no Egito, a organização não-governamental Human Rights Watch (HRW) divulgou um relatório de 188 páginas, no qual culpa as forças de segurança egípcias de matança intencional de manifestantes, em 14 de agosto de 2013. O documento, intitulado All acccording to plan: The Raba;a Massacre and mass killings of protesters in Egypt ("Tudo de acordo com o plano: o Massacre de Raba;a e o assassinato em massa de manifestantes no Egito"), descreve como agentes da lei abriram fogo contra ativistas pacíficos que protestavam contra o golpe que derrubou o presidente islamita Mohamed Morsy. A repressão ao protesto deixou entre 817 e mil mortos. Em entrevista ao Correio, Kenneth Roth, diretor-executivo da HRW, falou sobre o relatório e sobre o massacre.
A que conclusões a Human Rights chegou sobre o massacre de Rabaa? Qual era o objetivo das Forças Armadas do Egito?
Em 14 de agosto de 2013, forças de segurança egípcias usaram de extraordinária brutalidade para dispersar uma grande manifestação pacífica na Praça Rabaa, no Cairo, contra o golpe militar que derrubou o presidente Mohamed Morsy, matando pelo menos 817 pessoas e, provavelmente, mais de mil. O número de mortos é comparável aos mais importantes massacres de nossa época, como o da Praça da Paz Celestial, em 1989, e o de Andijan (Uzbequistão), em 2005. As autoridades egípcias prometeram uma dispersão gradual, que incluir alertas e uma saída segura para todos que desejassem deixar o protesto. O que se viu foi tudo, menos isso. Forças de segurança avançaram contra a multidão de manifestantes com retroescavadeiras e carros blindados, enquanto centenas de soldados disparavam munição letal.
Os manifestantes imediatamente começaram a cair. A saída segura prometida nunca se materializou até os minutos finais da dispersão, quando os manifestantes se esconderam numa área cada vez mais reduzida, enquanto franco-atiradores disparavam do telhado e a polícia atirava indiscriminadamente contra a multidão. Os franco-atiradores também alvejaram a entrada do Hospital Rabaal. Isso foi bem planejado, um massacre deliberado que se constituiu em crime contra a humanidade sob o direito internacional. Como o Egito se recusou a permitir qualquer investigação pública dessa atrocidade em massa, e muito menos processar um único indivíduo, a comunidade internacional tem o dever de intervir.
A Human Rights Watch pediu ao Conselho de Direitos Humanos da ONU que crie uma comissão de inquérito para investigar o massacre e identificar os responsáveis. A liderança nesses esforços do Brasil seria extraordinariamente importante. As vítimas dessa matança merecem que a justiça seja feita, sem que sejam levadas em conta as razões para as quais nações do Ocidente, como os Estados Unidos, nada fizeram. O secretário de Estado norte-americano, John Kerry, continua falando de progresso rumo à democracia que ninguém mais vê no Egito. Isso não vai ocorrer até que o Estado de direito seja estabelecido para um crime de magnitude extraordinária.
Por que o senhor e a senhora Sarah Leah Whitson foram proibidos de entrar no Egito?
Minha colega Sarah Leah Whitson, diretora da Human Rights Watch para o Oriente Médio, e eu chegamos ao Egito na noite de domingo para lançar o relatório. Nós já tínhamos compartilhado cópias com o governo, mas ele claramente não queria que publicássemos um relatório que não apenas comprovava crimes contra a humanidade, mas também implicava autoridades. O governo negou nossa entrada no país - foi a primeira vez, em 25 anos de trabalho da HRW no Egito, que isso ocorreu. Mas a resposta acabou por se mostrar um "gol contra", pois aumentou a atenção da mídia sobre nossas descobertas. Agora, precisamos traduzir a imensa atenção da mídia em ação governamental para investigar esse crime contra a humanidade.
O senhor crê que o governo atual estava envolvido diretamente no Massacre de Rabaa?
Há todas as razões para acreditar que foi uma operação planejada, que implicou altas autoridades do governo. O ministro do Interior, Mohamed Ibrahim, foi o arquiteto do plano de dispersão. Seu supervisor imediato, a cargo de todas as operações de segurança, era o presidente Abdel Fatah Al-Sisi, então ministro da Defesa e vice-primeiro-ministro para Assuntos de Segurança. Em discussões que antecederam a dispersão, autoridades do Ministério do Interior falaram em antecipar milhares de mortes. No dia seguinte à matança, o ministro Ibrahim disse que tudo tinha saído de acordo com o plano. Mais tarde, deu premiações aos participantes.
A dispersão em Rabaa era parte de um padrão de casos espalhados pelo Egito, nos quais as forças de segurança usaram de força excessiva, ainda que em grau reduzido. Isso inclui a matança de 61 participantes de um protesto pacífico do lado de fora do quartel-general da Guarda Republicana, em 8 de julho de 2013, e de 95 ativistas próximo ao Memorial Manassa, no leste do Cairo, em 27 de julho. Havia todos os motivos para que as autoridades tomassem providências para prevenir o assassinato em larga escala de manifestantes na Praça Rabaa, mas não há evidências de que elas o fizeram.
Altas autoridades pareceram agir com o conhecimento do crime que iriam praticar. Dois generais do Ministério do Interior disseram à agência Associated Press que autoridades de segurança de alta patente alertaram suas forças para escalarem rapidamente e que não se preocupassem em responder pelos seus atos. Um dos generais detalhou os passos dados pelo ministério para impedir a investigação forense na cena do crime, incluindo a mistura de munições de vários locais e o acobertamento dos registros de liberação de munição. As ruas em torno da Praça Rabaa foram repavimentadas e os prédios danificados reconstruídos, numa tentativa aparente de encorajar o esquecimento do que aconteceu ali.
Quais foram as conclusões mais intrigantes do relatório?
O governo egípcio foi rápido em destacar que houve alguma violência entre os manifestantes, mas isso não justifica a matança. À margem da manifestação, alguns jovens lançaram coquetéis molotov contra as forças de segurança e, em poucos casos, usaram armas. A polícia encontrou 15 pistolas entre dezenas de milhares de manifestantes, e o número de mortos entre agentes, de acordo com a Autoridade Médica Forense do governo, chegava a oito.
O saldo desproporcional de mortos sugere algo profundamente errado, especialmente levando-se em conta que o direito internacional autoriza o uso de força letal somente se for necessário e em caso de ameaça letal iminente. Longe de se esconder com medo da violência, a polícia permaneceu nos telhados e em carros blindados, enquanto disparava e avançava sobre os manifestantes. Testemunhas incontáveis, incluindo moradores e jornalistas independentes, descreveram um esforço concentrado para neutralizar um punhado de manifestantes armados. As forças de segurança indiscriminadamente ceifaram os ativistas da Praça Rabaa.