O ativista indiano Kailash Satyarthi, 62 anos, ganhador do Prêmio Nobel da Paz em 2014 por sua luta contra o trabalho infantil e escravo, está em Brasília. Durante o lançamento da campanha #SomosTodosLivres, promovida pelo Tribunal Superior do Trabalho (TST), ele contou a sua incansável história de luta em prol da infância. Em 1980, aos 26 anos, Kailash abriu mão da carreira como engenheiro elétrico e professor universitário para se dedicar a causas sociais. Desde então, resgatou mais de 84 mil crianças vítimas de rotinas forçadas de trabalho.
Amigo do ministro do TST Lelio Bentes, que o hospedou na cidade, Kailash visitou o Brasil diversas vezes e conhece bem a legislação local, que destaca como avançada. Em meio a compromissos no TST e cercado por autoridades e funcionários do órgão, que se revezavam para registrar fotografias, Kailash conversou ontem à tarde com o Correio. O ativista, que passou por Recife e São Paulo antes de chegar à capital, se despede do país no sábado, quando embarcará à Itália para compromissos no Vaticano.
O senhor disse que uma das maiores mudanças que o Nobel da Paz lhe trouxe foi a atenção de líderes mundiais. Nessa nova fase, o senhor está mais dedicado a brigar por políticas públicas contra o trabalho escravo e infantil ou segue participando de batidas em fábricas e empresas irregulares?
Eu participo de ambos. Há 35 anos, luto diretamente e reivindico políticas, porque novas leis e iniciativas são muito importantes. Libertar as crianças é igualmente importante, mas não podemos libertar todas as crianças e educar todas elas sem políticas fortes. Essa é a parte do governo e da comunidade internacional. Agora, estou trabalhando em três vertentes, com a minha nova fundação (Kailash Satyarthi Foundation). A primeira é o esforço político: exigir que governos e organizações internacionais, como as Nações Unidas, assumam posturas rigorosas. As crianças precisam que todos os aspectos legais aos quais têm direito sejam respeitados ; educação, saúde, liberdade e proteção legal contra a exploração, o trabalho infantil e a escravidão. As diferentes agências e órgãos são responsáveis por diferentes assuntos. Tudo é muito fragmentado. Por exemplo, um ministério é responsável por trabalho infantil, mas se uma criança forçada a trabalhar também sofreu violência sexual, a polícia ou o Ministério da Justiça cuida dessa parte. A mesma criança tem direito à edução, que é de responsabilidade do Ministério da Educação. Cada órgão tem suas políticas particulares e o que precisamos é de mais políticas holísticas. Em segundo lugar, queremos identificar as melhores práticas ao redor do mundo para aperfeiçoá-las e replicá-las em outros países. O terceiro ponto é o engajamento de jovens ao redor do mundo. Vamos lançar, em breve, uma grande mobilização.
De que modo essa mobilização deve funcionar?
Será uma campanha de 100 milhões por 100 milhões. Cerca de 100 milhões de jovens em todo o mundo não têm direito à infância, liberdade, educação ou assistência médica. São vítimas de diferentes formas de violência. Por outro lado, mais de 100 milhões de jovens querem fazer coisas boas pela sociedade. Estão em escolas, universidades, são jornalistas, jovens profissionais cheios de energia, que desejam contribuir, mas não sabem como. Em muitos casos, essa energia e esse entusiamos são perdidos. Por isso, quero conectar esses 100 milhões para que se tornem líderes e agentes de mudança. Então, 100 milhões de jovens devem promover melhorias a 100 milhões de excluídos. E isso vai ocorrer muito em breve. Será muito grande e importante.
O que ocorre com as crianças trabalhadoras depois que são resgatadas por sua organização e por parceiras ao redor do mundo?
Lutamos por políticas de reabilitação. Com a minha organização, a BBA (Bachpan Bachao Andolan) e a Marcha Global contra o Trabalho Infantil, que é um movimento mundial, nós trabalhamos com entidades locais e encorajamos os nossos parceiros a organizarem abrigos e a tornarem disponíveis programas de educação e de reabilitação para ajudar nesse ponto. Mas, eventualmente, é responsabilidade do governo reabilitar, econômica e socialmente, essas crianças.
Quando o senhor tinha 26 anos, decidiu largar sua carreira para se dedicar à luta pelas crianças e foi criticado por familiares e amigos. Como eles veem o seu trabalho hoje?
Eu sempre tento manter o meu coração como o coração de uma criança, para que minhas decisões possam ser baseadas em algum tipo de pureza. Crianças tomam decisões erradas, eu também. Acredito que, se sua intenção for pura, sua determinação for profunda, sua convicção for forte, e se você tiver coragem, pode fazer o que quiser. Fui criticado à época e foi um longo caminho. Por muito tempo, minha mãe ficou triste. Ela faleceu há alguns anos, mas acompanhou boa parte de minha carreira. Quando via notícias de que eu e outros ativistas tínhamos sido atacados, ela sofria bastante. Vivia preocupada e triste. No entanto, depois de um tempo, viu minhas fotos em jornais e na televisão, e começou a mudar. Eu recebi um importante prêmio (em 1995), o Robert F. Kennedy Human Rights Award. Meus amigos e familiares comemoraram muito. Minha mãe tirou todo o dinheiro de sua pensão, que passou a receber após a morte de meu pai, e comprou muitos doces para distribuir por todo o bairro. Ela era a pessoa mais feliz do mundo naquele momento. Ficou muito orgulhosa, dizia que não importava as dificuldades que seu filho estivesse passando, porque valiam a pena.
A Índia ainda tem muitos problemas em relação ao trabalho infantil. O que o senhor acha que o país precisa fazer para garantir os direitos de crianças e adolescentes?
O governo da Índia precisa aprovar uma lei mais rígida. Temos uma legislação fraca nesse sentido e estamos lutando por uma nova. Também cobramos do governo para que ratifique duas convenções da OIT (Organização Mundial do Trabalho), uma sobre idade mínima para trabalho e a outra sobre responsabilidade contra trabalho infantil.
Em muitos aspectos, Brasil e Índia têm realidades semelhantes. O que os países em desenvolvimento podem fazer para melhorar?
Os dois são membros do Brics (grupo formado por Brasil, Rússia, Índia, China e África do Sul) e do Ibas (Fórum de Diálogo Índia, Brasil e África do Sul). Essas economias em rápido crescimento precisam se fortalecer e ocupar um espaço mais amplo na geopolítica. Elas estão fazendo isso agora, mas precisam de mais força, porque o futuro do mundo está nas mãos desses países. O futuro não está no pensamento convencional e nos países tradicionalmente ricos. O futuro está aqui.