Rodrigo Craveiro
postado em 14/02/2016 08:00
Com a patente de capitão, ele gozava de respeito e de admiração nas fileiras do Exército da Coreia do Norte. Em 1997, viu a irmã de 4 anos definhar, com fome, até a morte ; em três anos, cerca de 3 milhões de pessoas sucumbiram à falta de alimentos. Até que, em 26 de agosto de 2005, após mais de uma década de carreira militar, percebeu que era alvo de manipulação do regime. Desertou, abandonou o país e escapou rumo à China, ao atravessar a nado o Rio Dooman. Depois, refugiou-se no Vietnã, Camboja e Tailândia, antes de partir para o Reino Unido, em 2007, com a ajuda de uma organização não governamental. Aos 43 anos, casado e pai de duas garotas, Kim Joo-il vive atualmente como asilado em New Malden, a cerca de 17km de Londres, onde dirige a Associação Internacional para Direitos Humanos e Democracia para os Norte-Coreanos (INKAHRD) e edita o jornal FreeNK. Em entrevista exclusiva ao Correio, Kim Joo-il acusou o regime de Kim Jong-un de promover uma lavagem cerebral nas crianças, impor uma vida de miséria e violar direitos humanos básicos da população.
De que modo a Coreia do Norte costuma doutrinar as crianças para se tornarem obedientes ao regime?
Os moradores da Coreia do Norte recebem uma lavagem cerebral no que diz respeito ao ditador, do momento em que nascem até a sua morte. A primeira expressão que as crianças do jardim de infância aprendem, aos 5 ou 6 anos, é ;Obrigado, Líder Querido;. Desde então, até a entrada na universidade, a educação escolar se foca na idolatria e na divinização do ditador. Os temas sobre a idolatria e a divinização concentram quase 30% do currículo. Crianças em tenra idade são forçadas a exercer lealdade absoluta e incondicional ao ditador. A meta final é nutrir indivíduos que sejam capazes de se engajar em atentados suicidas, se isso for pedido pelo ditador. Mesmo que um estudante alcance altas notas em disciplinas como matemática, física e química, até a graduação, se tiver baixo rendimento nos temas de idolatria não pode entrar na universidade. Por isso, os pais sutilmente incentivam os filhos a obterem altas notas nesses tópicos.
Como é viver sob o controle de Kim Jong-un?
Após a terceira sucessão hereditária e o começo do regime de Kim Jong-un, moradores da Coreia do Norte continuam a viver sob duras condições econômicas. Isso levou a dois desdobramentos. O primeiro é que o regime tem reduzido um pouco o controle sobre os cidadãos em áreas relativas à economia. O segundo é que parece haver um mercado capitalista emergindo da sociedade norte-coreana. A Coreia do Norte é um país onde a liberdade de movimento, de imprensa, de escolha de profissão e outros direitos básicos não são reconhecidos. Mesmo assim, quando as economias socialistas do Leste Europeu ruíram, na década de 1990, a norte-coreana também começou a retrair e, eventualmente, suspendeu o sistema de racionamento controlado pelo Estado. Entre 1997 e 2000, a Coreia do Norte experimentou a chamada ;Marcha Árdua;, em que 3 milhões de pessoas morreram de fome. Desde então, os cidadãos têm migrado, sem permissão de viagem por parte do regime, em busca de comida.
Por que o senhor decidiu desertar do Exército norte-coreano e fugir do país?
Eu decidi escapar da Coreia do Norte como um meio de resistência política contra o regime. Enquanto servia como oficial do Exército norte-coreano, testemunhei grave desnutrição nas fileiras militares. Em um batalhão de 100 soldados, 30% são pacientes abaixo do peso, fracos demais até mesmo para o treinamento militar. Por isso, havia casos de deserção estimulada pela fome. Meu trabalho era viajar até o interior e prender os desertores. Naturalmente, eu viajei por toda a Coreia do Norte e abri os meus olhos para a realidade da situação do país. Percebi que a ideia de que o mundo inteiro admirava a nação era uma propaganda do regime. Então, comecei a questionar: ;Como é o mundo lá fora? Eu tenho sido enganado pela Coreia do Norte por toda a minha vida?; Eu decidi escapar para obter respostas a essas questões básicas.
O senhor poderia citar exemplos de desrespeito aos direitos humanos?
A liberdade de religião é gravemente violada na Coreia do Norte. De acordo com o relatório intitulado Religião e Crença na República Democrática Popular da Coreia, publicado em 11 de dezembro de 2014, a Coreia do Norte obliterou completamente todos os tipos de religião. Também torturou, massacrou e prendeu religiosos em campos de trabalho forçado, sob as ordens de Kim Il-sung, em 1962. Mulheres e crianças são vulneráveis às violações dos direitos humanos, elas experimentam aborto forçado, tráfico humano e outras formas de tratamento desumano. A Coreia do Norte considera deficientes físicos como uma desgraça, algo que mancha a reputação do país. Sua existência é tida como um insulto ao regime. Eles são usados como cobaias em testes médicos. Tais violações ocorrem em nível de Estado. Na Coreia do Norte, existe um hospital especial para Kim Jong-un e para um pequeno número de políticos da elite. Outras pessoas são forçadas a se submeterem a cirurgias sem anestesia. Em alguns casos, diplomatas norte-coreanos secretamente vão para o exterior em busca de tratamento médico. As violações dos direitos humanos atingem todos os aspectos da sociedade. Por não podermos ignorar tal realidade, criei no Reino Unido a Associação Internacional para Direitos Humanos e Democracia para os Norte-Coreanos (INKAHRD). Também editamos o jornal FreeNK e nos esforçamos para permitir que o mundo saiba sobre a situação de direitos humanos na Coreia do Norte.