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Morales tenta dar sobrevida a projeto político em país dividido

O presidente deixará o cargo só em 2020, após um recorde como o governante que passou mais tempo no poder da Bolívia

Agência France-Presse
postado em 24/02/2016 19:31

Depois da derrota que o impedirá de buscar uma nova reeleição na Bolívia, Evo Morales sacudiu a poeira e garantiu que continuará com seu projeto político, em um momento de turbulência para a esquerda latino-americana.

"Perdemos a batalha, mas não a guerra", afirmou Morales, ao comentar os resultados que confirmam o "não" (51,30%) a seu desejo de assumir um quarto mandato consecutivo, contra 48,70% do "sim".

Agora, deixará o poder em 2020, após um recorde como o governante que passou mais tempo no poder no país.

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O golpe a Morales se soma a outros sofridos por seus colegas de esquerda na América Latina, como no caso dos Kirchner, na Argentina, e da derrota do oficialismo na Venezuela, nas eleições legislativas de dezembro passado. Enquanto isso, no Equador, o presidente Rafael Correa viu seu projeto de reeleição presidencial ilimitada ser aprovado no Congresso.

O apogeu da esquerda na América do Sul na última década se apoiou no boom das commodities, o que lhe garantiu um imenso volume de recursos investidos em programas sociais que tiraram milhões de pessoas da pobreza. Aparentemente, esses recursos também foram para as mãos de políticos corruptos.
Projeto está mantido

Ganhador de três eleições presidenciais seguidas, Evo Morales defendeu que apenas ele e seu partido, o Movimento Ao Socialismo (MAS), garantem soberania econômica e política. Acrescentou ainda que "vamos continuar o projeto, com os movimentos sociais, com o povo boliviano".

"O programa (de governo) não está em debate, embora fosse interessante se a direita apresentasse seu programa", insistiu, consciente de que ainda mantém o sólido apoio do voto indígena e camponês.

Nas últimas semanas, a situação se complicou para o presidente, acusado de favorecer com contratos milionários a empresa chinesa CAMC. Sua ex-mulher Gabriela Zapata trabalha como gerente comercial nessa companhia.

Também se viu atingido por um escândalo que envolve líderes camponeses - alguns próximos dele - investigados por uma fraude de 2,5 milhões de dólares a um fundo de fomento.

Nesse contexto adverso, Morales atribuiu sua derrota a "uma guerra suja nas redes sociais".

Ao contrário do momento ruim de seus aliados regionais do "Socialismo do Século XXI", a situação de Morales é distinta: mantém apoio popular de pelo menos metade da população, tem maioria na Assembleia Legislativa para garantir suas reformas e é apoiado por uma administração econômica responsável que impulsionou o país a crescer em torno de 5% ao ano - mais do que os vizinhos.

Além disso, seus rivais da oposição não são um bloco sólido.

"A principal mensagem a extrair é a da unidade, ou seja, que o caminho da unidade é o de que a Bolívia necessita", afirmou o líder opositor boliviano Samuel Doria Medina, insistindo em que "a principal mensagem que a população nos deu é que, se trabalharmos unidos, teremos resultados".

Para o diretor-executivo do Observatório sobre América Latina da SciencesPo Paris (Opalc), Gaspard Estrada, "diferentemente de outros presidentes latino-americanos, (Morales) continua sendo uma figura popular, respeitada".

"A Bolívia é um país dividido desde que Morales chegou, e o que o resultado do referendo mostrou é que o país continua dividido frente à experiência política do MAS. É mais uma sanção frente à intenção de não ter limitações no tempo do MAS", acrescentou.

O cientista político boliviano Carlos Cordero considerou que, "com esses resultados o governo não cai, mas o presidente teria de fazer uma avaliação dos temas que precisam de atenção, incluindo os internacionais, como os contratos (de gás) com o Brasil, a demanda marítima (contra o Chile), onde o país ainda acredita na liderança de Evo Morales".

Menos caudilhos

Para alguns analistas, está chegando ao fim uma etapa de lógica neopopulista na América Latina.

"Acredito que vamos entrar em uma fase de transição. Não acredito em uma mudança radical, ou pendular, do eixo político - salvo na Argentina (com Mauricio Macri, de direita) -, mas a tendência é mais de uma mudança para uma tendência de centro-esquerda", considerou o cientista político da Universidad Mayor de San Andrés (UMSA) de La Paz, Marcelo Silva.

Também vão surgir novas lideranças na sociedade que não vão negar os avanços e as conquistas sociais, completou.

Para o professor universitário e internacionalista peruano Carlos Novoa, após a morte do líder Hugo Chávez, não foi apenas a Venezuela que ficou órfã de uma liderança de esquerda, mas todos que seguiam-no na América Latina.

"Nem Chávez, nem Morales, nem os Kirchner conseguiram configurar um movimento político sustentável que superasse seus próprios dirigentes. Construíram seu partido com base em um caudilho sem buscar novas lideranças. Estão acabando os caudilhos do socialismo do século XXI", sentenciou.

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