Chamado aos brasileiros
O Comitê Internacional da Cruz Vermelha (CICV) descobriu o Brasil definitivamente e já vê o país não apenas como objeto de atenções, mas também como fonte de recursos ; humanos e financeiros ; para sua extensa e variada rede global de atividades humanitárias. ;Existe neste país uma ótima formação para profissões das quais temos necessidade e também uma grande aceitação, pelo mundo, da nacionalidade brasileira, da maneira de ser dos brasileiros;, disse ao Correio a diretora de Operações do CICV para as Américas, Angela Gussing.
Em visita a Brasília, na semana passada, poucos meses depois de ter assumido as atividades no continente, essa luso-suíça que preza especialmente o papel do ;país do mundo onde mais se fala o português; passou em revista as múltiplas iniciativas da organização na América Latina. Ela aposta no potencial de uma região com um histórico recente de conflitos, combinado com o crescente amadurecimento das instituições, após décadas marcadas por um ciclo de golpes e ditaduras militares. ;Uma das características daqui é uma institucionalidade muito alta, em relação a muitos outros contextos nos quais o CICV trabalha;, avalia.
Atenta a um problema comum e enraizado, o da criminalidade e da violência em múltiplas formas, Angela identifica como uma ;tradição; latino-americana a situação explosiva no sistema carcerário ; área de atuação que permeia os esforços da Cruz Vermelha em praticamente todos os países ao sul do Rio Grande. Em particular, porém, a organização estuda e se prepara para um grande desafio que se aproxima: as tarefas humanitárias à vista com a perspectiva próxima da conclusão de um acordo de paz para pôr fim a meio século de luta armada na Colômbia. E, também nisso, conta com o Brasil: ;Eu só posso encorajar um acompanhamento nas áreas em que for possível. Vemos com muito bons olhos;.
Recrutamento
Acabamos de abrir, em meados de fevereiro, um escritório em São Paulo, principalmente porque detectamos a possibilidade de utilizar e ter pessoal brasileiro para as operações do CICV. É, realmente, um pessoal que tem muita aceitação, no mundo inteiro. Existe muito boa preparação e muitos bons profissionais neste país. Temos a conjunção desse bom preparo, pertinente para o nosso tipo de atividade ; são engenheiros, médicos, profissionais de saúde em geral, de relações internacionais... Realmente, existe neste país uma ótima formação para profissões das quais temos necessidade e também uma grande aceitação, pelo mundo, da nacionalidade brasileira, da maneira de ser dos brasileiros, que é também um fator importante. Este é um escritório que visa a reforçar o recrutamento de pessoal brasileiro e também a angariação de fundos privados. Nos últimos anos, temos os orçamentos mais altos da nossa história. É difícil arrecadar os fundos, então se trata de diversificar, com agentes privados, e pensamos que o Brasil também pode dar bons resultados nisso. Tornar mais conhecido o trabalho do CICV é uma atividade com a qual podemos atingir esses dois objetivos.
Operações
Temos com as autoridades brasileiras um diálogo temático sobre questões humanitárias em áreas multilaterais do Direito Internacional Humanitário (DIH), tivemos um projeto no Rio, em parceria com as autoridades brasileiras, em especial os ministérios da Saúde e da Educação, continuamos um trabalho com os policiais, em algumas favelas do Rio, e apoiamos as secretarias da Educação e da Saúde na replicação desses métodos de trabalho que eles desenvolveram com o nosso apoio em zonas mais complicadas em nível de segurança. Fazemos formação em DIH com o pessoal do Exército que participa de missões de paz e trabalhamos com as forças policiais, principalmente as PMs, não na formação, mas na adaptação dos manuais aos padrões iunternacionais quanto ao uso da força. Fizemos um trabalho grande no país com as forças policiais, a partir do fim dos anos 1990. Estamos fazendo, a pedido das autoridades brasileiras, uma avaliação de algumas famílias de desaparecidos, em São Paulo, principalmente, no cemitério de Perus.
Outros países
Fazemos no Paraguai visitas a prisões, apoiamos comunidades no norte do país, com projetos de água e saneamento, de hortas. No Chile, trabalhamos com a comunidade indígena mapuche, com visitas a prisões. Temos uma pequena missão na Argentina, hoje também em questões multilaterais, porque as autoridades também trabalham com mecanismos de respeito ao DIH, na questão dos desaparecidos e outras questões internacional. A pedido das autoridades argentinas, vemos como podemos ajudar na questão humanitária das Malvinas, dos soldados não identificados que estão enterrados lá. Fazemos um trabalho com as famílias e vemos o que é possível com as autoridades britânicas e das ilhas.
Colômbia
Estamos examinando algumas que sabemos que serão as grandes questões humanitárias no pós-conflito, e a primeira é a dos desaparecidos. Damos uma prioridade muito grande a isso, desde que as partes (governo e guerrilha das Farc) anunciaram um acordo sobre esse tema. O CICV assumiu o papel de avançar no trabalho sobre os desaparecidos, com a confiança das partes. Essa é realmente uma questão importante, também para a reconciliação. O que a paz com as Farc pode significar nos próximos anos? Mais trabalho ou menos trabalho? Na parte das prisões, pode ser mais trabalho. Há também a reintegração dos menores (recrutados pela guerrilha) para suas famílias: como poderemos acompanhar esse processo? E, principalmente, nas questões em que o DIH permanecerá vigente para as partes. Temos a questão das minas terrestres e da contaminação por armas. E a população deslocada pelo conflito, o retorno para casa. São vários milhões, trabalhamos com os números do governo colombiano ; o país tem uma legislação humanitária importante ;, articulados com os do Acnur e outros. Fala-se em 6 milhões, mas são dados talvez de há 10 anos. A assistência aos deslocados já é feita majoritariamente pelas autoridades colombianas, nós apoiamos apenas os que ficam entre dois fogos, para que ninguém fique totalmente desassistido. Tratamos de ver se, caso haja o retorno dos deslocados, se nos caberá algum trabalho, no futuro.
Papel do Brasil
Seria muito bom que houvesse um acompanhamento de vários países no processo da Colômbia. Eu sei que o Brasil hoje tem um papel na capacitação de pessoal para a desminagem do terreno, é uma área extremamente importante para a população, porque existem áreas completamente vedadas ao acesso dos camponeses. Eles não podem trabalhar no campo, praticar o seu modo de vida, e isso fará uma diferença enorme. O envolvimento do governo brasileiro é importante. Já trabalhamos juntos em operações de libertação de reféns, as autoridades brasileiras têm aceitação pelas várias partes do conflito, o que é importante para esse trabalho. Eu só posso encorajar um acompanhamento do Brasil nas áreas em que for possível, no terreno humanitário. Vemos com muito bons olhos.
Experiência no Peru
Nosso trabalho nas Américas tem muito a ver com conflitos. Os atuais, como é o caso da Colômbia, mas também os conflitos passados, como, notadamente, o do Peru. Temos ainda um trabalho muito grande em relação aos desaparecidos no conflito com o Sendero Luminoso (na década de 1980 e início da seguinte). Restam ainda 13 mil e poucos, é o número com que trabalhamos, nós e as autoridades peruanas. Todos os anos conseguimos localizar e identificar alguns deles, para que as famílias possam fazer um sepultamento digno. Ajudamos as autoridades para que façam a parte delas, já que não vamos ficar eternamente. E acompanhamos as famílias, porque quando em que se entregam os restos mortais elas revivem muito do que se passou, é um momento difícil, em que se revive muita coisa. Fazemos esse trabalho em Lima e na região de Ayacucho, onde está o maior número de desaparecidos. Também há um trabalho importante nas prisões, principalmente quanto a condições de detenção, superpopulação carcerária, acesso dos presos a saúde.
Criminalidade e prisões
Existe talvez uma tradição na América Latina. As prisões, normalmente, têm a extensão das autoridades, não são grupos. Os governos sabem como nós trabalhamos, e não é uma área ;popular;, na qual muita gente se empenha, porque, neste continente, que é muito afetado pela violência, há uma opinião pública que, nos seus extremos, costuma dizer: ;Todos para dentro!’ (da prisão). Há situações de superpopulação dramática, em alguns países, e não há muita abertura para resolver esses problemas, que exigem recursos, orçamento. Os governos sentem que precisam de apoio, e apreciam o apoio dado pelo CICV para que possam melhorar as condições de detenção. Muitos nos dizem: ;Vocês foram os únicos que continuaram a trabalhar conosco;. Mais do que a oferta de serviços humanitários, da nossa parte, é um pedido de ajuda. É uma atividade que inclui também muita capacitação. Promovemos eventos com responsáveis por prisões, nos quais apresentamos os padrões internacionais, eles compartilham experiências ; são iniciativas muito práticas. Existe, às vezes, um diálogo muito franco sobre o que precisa ser mudado no sistema carcerário, mas as autoridades do setor sabem que não vamos sair e falar disso para os jornais. Não é apenas dizer que isso está ruim, aquilo está ruim, mas que aquilo outro está bom e é preciso avançar, e nós podemos ajudar aqui e ali, e vocês precisam fazer isso e aquilo. É a nossa maneira de trabalhar: fazemos o diagnóstico e propomos soluções realizáveis.
Imigração
Temos uma atenção, no México e na América Central, com a questão dos migrantes. Não somos uma instituição que ajuda o migrante à procura de melhor futuro em termos econômicos, mas constatamos que ele, no trajeto da migração, está particularmente vulnerável à violência. Ele quer passar despercebido, muitas vezes não tem documentos, não está no seu país, na sua comunidade, não tem como pedir ajuda a ela. Muitas vezes, passa por áreas remotas, em situações complicadas. Temos a violência sexual contra as mulheres. Tentamos ajudar nessas questões pontuais. Temos que fazer escolhas, temos de eleger prioridades, porque não podemos ajudar a todos. As realidades deste continente trazem bastante consequências humanitárias, e temos a ambição de estar em sintonia com as necessidades humanitárias causadas pela violência ; fazendo pouco, com poucos recursos, mas com muita boa vontade.