Ana Paula Macedo
postado em 02/07/2017 08:00
Kahramanmaras e Osmaniye (Turquia) ; O trajeto é curto. Apenas 20km separam o centro de Kahramanmaras do campo temporário de refugiados. Parece mais. A paisagem se transforma radicalmente. Torna-se árida. À primeira vista, pouco acolhedora. No meio do descampado, rodeada por montanhas, surge a cidade, moradia de 23.887 pessoas, a maioria sírios que abandonaram o país por conta do conflito entre o regime de Bashar al-Assad e rebeldes e das ações do Estado Islâmico. Ali, numa área de 374 mil metros quadrados, protegida por uma cerca de arame farpado e altamente patrulhada, os fugitivos das guerras vivem um dia de cada vez. Mas sempre pensando em conseguir uma oportunidade de trabalho em alguma grande cidade turca, um visto para outro país ou ainda o retorno para a Síria, distante 100km dali. ;Gosto daqui, sou bem tratado. Mas queria mesmo era poder voltar para casa;, diz Jamal.
Logo que atravessa os portões de segurança do campo, o olhar do visitante é atraído por três painéis com fotografias de Recep Tayyip Erdogan. Dispostas à frente das fileiras de contêineres brancos transformados em residências, as imagens mostram o presidente turco conversando com crianças, olhando o horizonte, ou de braços erguidos, como a dar boas-vindas ao visitante, ao lado da mulher. O colorido dos gigantescos cartazes contrasta com o ambiente monocromático. Demora um tempo até que, finalmente, a atenção repouse nos refugiados, que acompanham a movimentação dos estranhos a distância. Mais arredios, os adultos esperam o contato. Sob o sol escaldante de meio-dia, as crianças logo se aproximam com pedidos para tirar fotografias.
[SAIBAMAIS]O centro temporário de Kahramanmaras é um dos orgulhos do programa de acolhimento a refugiados implementado por Ancara. Lá, desde meados do ano passado, as tendas foram banidas. Os 18.519 sírios e 5.368 iraquianos ; 52% deles crianças e adolescentes de até 18 anos ; vivem agora em pequenos apartamentos feitos em contêineres, com banheiro, cozinha e eletricidade. Os módulos, com duas unidades cada, estão em ruas pavimentadas. Há escolas, onde as crianças passam cerca de três horas diárias, além de centro de saúde, áreas esportivas, playgrounds, duas mesquitas e três mercados. Para as compras, o governo dá mensalmente uma ajuda financeira no valor de 100 liras turcas (o equivalente a R$ 94,20 ) por pessoa. ;Temos uma vida melhor aqui do que a espera pela morte na Síria;, diz Amman, que fugiu do regime de Bashar al-Assad com a mulher e três filhas.
De acordo com os dados oficiais, a Turquia recebeu, nos últimos seis anos, 3,5 milhões de refugiados, quase a totalidade proveniente da Síria. É a nação que acolhe o maior número de expatriados no mundo, o que lhe rendeu, nos últimos dois anos, o título de país mais generoso do planeta, reconhecimento que as autoridades turcas ressaltam a todo momento.
Mais de 90% dos refugiados estão nas cidades e levam uma vida normal, com trabalho e moradia. Muitos com recursos próprios, que conseguiram levar da Síria, e parte recebendo ajuda governamental. Mas 247 mil estão distribuídos por 23 campos temporários, enquanto aguardam a avaliação de suas solicitações de asilo. Para muitos, no entanto, a resposta nunca vem, pelo menos não de forma positiva. E o que era para ser transitório ganha caráter permanente. Mohammed era professor de francês e tradutor em Idlib. Com cinco filhos e nenhum dinheiro, nutre o desejo de ir para o Canadá. Mas nada de visto.
Controle
Na semana passada, o Correio esteve por três horas em Kahramanmaras. No dia seguinte, visitou o centro de Osmaniye, outra vitrine do programa para refugiados, distante cerca de 109km dali e a duas horas de carro da fronteira com a Síria. Com potencial para expansão, Osmaniye tem atualmente capacidade para abrigar 10 mil refugiados. De resto, a infraestrutura é a mesma de Kahramanmaras, com saneamento básico e serviços essenciais à disposição. O clima é de aparente normalidade, com crianças brincando e indo às escolas, enquanto adultos fazem compras e cuidam dos lares, exceto pelo policiamento ostensivo e pelo monitoramento rigoroso de entrada e de saída, que conferem ao local um aspecto prisional.
Segundo as autoridades turcas, trata-se apenas de uma impressão. O direito de ir e vir é garantido para todos, asseguram. O patrulhamento, acrescentam, serve essencialmente para a segurança dos moradores. ;Nas suas casas há controle, não há?;, pergunta aos jornalistas Mehmet Halis Bilden, presidente da Afad, a agência turca responsável pelas ações de emergência. ;Isso não é uma competição, mas se já viram um campo de refugiados em outro lugar do mundo, digam-me;, provoca.
Há cinco anos, o centro Osmaniye é a casa dos Medniye, uma das primeiras famílias a chegar ao local. Mustafa, 50 anos, tomou a decisão de deixar Latakia, coração da minoria religiosa alauita de al-Assad, poucos meses depois do início do conflito, em 2011. A casa onde morava foi destruída por bombardeios. O clã tinha outros três imóveis, também detonados por bombas que mataram dois irmãos e dois de seus filhos. O choque emocional foi tão forte que Mustafa perdeu todos os dentes.
;Não havia escolha para nós;, conta, com a mão tapando a boca. Ele, então, convocou a mulher, os seis filhos sobreviventes e a sogra, reuniu os poucos bens que conseguiram tirar dos escombros e deixou para trás a cidade portuária síria rumo à fronteira com a Turquia, em 10 dias de extenuante caminhada.
Nesse tempo de asilo compulsório, Mustafa viu a família crescer. A filha mais velha, Merve, de 23 anos, havia acabado de se casar quando deixaram Latakia. Em Osmaniye, ela deu à luz Benen Durmus, 3 anos, e Daha, 10 meses. Nos 23 campos mantidos pela Afad, são registrados aproximadamente 2 mil nascimentos anuais. Uma nova geração de sírios que surge longe de casa, por força da guerra.
Investimento estratégico
Segundo os cálculos de Ancara, o sistema de atendimento a refugiados consumiu mais de US$ 25 bilhões nos últimos cinco anos. ;É uma questão de consciência;, destaca a mensagem contida nos painéis instalados no centro de Kahmaranmas. É mais do que isso. Além de reconhecimento internacional, o sucesso do programa se torna cada vez mais uma poderosa carta na manga do presidente Recep Tayyip Erdogan nas negociações com a comunidade internacional, sobretudo com a Europa.
Em março de 2016, numa investida desesperada para barrar o intenso fluxo migratório, os europeus firmaram um pacto com os turcos. Para fechar a rota pelo Mar Egeu, Ancara incluiu três condições: 6 bilhões de euros para assistência aos refugiados, isenção de visto para viagens de cidadãos turcos e avanço no processo de adesão do país ao bloco europeu. Passados 16 meses, a contrapartida não veio da forma acertada. E Erdogan, por mais de uma vez, ameaçou liberar a passagem para a Europa. Até o momento, a comunidade internacional contribuiu com US$ 526 milhões, cerca de 2% do total investido pelos turcos.
A jornalista viajou a convite do governo da Turquia