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Ex-guerrilheiros das Farc fazem planos para enfrentar as urnas em 2018

Mais de um mês depois de entregar as armas e fundar um partido político, ex-guerrilheiros das Farc cobram do governo de Juan Manuel Santos os compromissos assumidos nos acordos

Jorge Vasconcelos
postado em 16/10/2017 06:00
Marcha após a fundação do partido dos ex-guerrilheiros, chamado Força Alternativa Revolucionária do Comum: sigla antiga se manteve
Passados 40 dias da fundação, o partido político Força Alternativa Revolucionária do Comum (Farc) acaba de se registrar no Conselho Nacional Eleitoral (CNE) da Colômbia, selando o ingresso na sociedade civil dos ex-combatentes da maior guerrilha da conturbada história do país. Seus membros, que depuseram as armas em julho, seguem à risca o roteiro do histórico acordo de paz firmado em novembro passado, em Havana ; e nem o fato de acusarem o presidente Juan Manuel Santos de não cumprir sua parte parece capaz de fazê-los mudar de rumo. Por trás desse compromisso com o fim de uma era de violência, que deixou mais de 200 mil mortes, pode estar o interesse do partido em empunhar a bandeira da paz como a principal a arma para conquistar o tão sonhado espaço no cenário político colombiano.

;Eles manterão o discurso de criticar o presidente Santos como estratégia para chegar ao poder, embora o acordo de paz tenha sido um grande avanço, pois encerrou um ciclo de 50 anos de violência e mortes;, disse ao Correio Alcides Costa Vaz, professor do Instituto de Relações Internacionais da Universidade de Brasília (UnB) e pesquisador do Centro de Estudos Estratégicos do Exército Brasileiro. ;Eles não darão trégua ao governo na política, como não deram à época do conflito armado. Eles sempre quiseram chegar ao poder e devem fazer uma oposição ferrenha ao presidente até as eleições do ano que vem;, prevê.

Entre as cláusulas reclamadas pelo novo partido estão as que preveem o pagamento de 95% do salário mínimo nacional aos ex-combatentes das Forças Armadas Revolucionárias da Colômbia (Farc, sigla mantida pela nova legenda política). Os acordos também asseguram a eles acesso aos serviços públicos de saúde e preveem a libertação de todos os guerrilheiros presos, desde que reconhecidos como tal pelo Alto Comissariado para a Paz, além da suspensão de todas as ordens de captura de ex-integrantes da guerrilha.


Impacto econômico


Para o professor Costa Vaz, a crise econômica vivida pela Colômbia pode estar na raiz da dificuldade do governo para honrar alguns compromissos, sobretudo os que envolvem políticas públicas. ;São mais de 7 mil ex-guerrilheiros e as respectivas famílias, uma grande população que passou a demandar por serviços sociais. Certamente, o governo enfrenta grandes dificuldades no varejo. Mas, no todo, o acordo significou um grande avanço na pacificação interna;, acrescenta Vaz. Segundo ele, embora haja dissidentes que não aderiram ao acordo de paz e seguem na luta armada, eles não passam de 250 e, dessa forma, são desprovidos do poderio necessário para desestabilizar o processo de reconciliação.

Na semana passada, ao acompanhar o registro do novo partido no CNE, um de seus líderes, Iván Marquéz, ressaltou que a legenda será ;uma força esmagadora; de transformação. ;Ao nos convertermos na Força Alternativa Revolucionária do Comum, estamos entregando ao povo essa potência, essa força esmagadora, para que, com as próprias mãos, direcione a mudança;, disse Marquéz. ;A guerra ficou para trás, com sua carga de dor e luto. Fechamos essa página triste e, agora, devemos nos dedicar a reconciliar a família colombiana, curando as feridas com a verdade.;


Novas estratégias


O novo partido está definindo as estratégias para as próximas eleições, de 2018, e trabalhando na escolha de candidatos para concorrer ao Congresso. Os dirigentes não descartam a opção de apresentar um nome para as eleições presidenciais, no mesmo ano, e anunciam que vão apoiar ;candidatos civis; de diferentes regiões na campanha para a Câmara dos Deputados. O presidente da legenda e ex-comandante máximo da guerrilha, Rodrigo Lodoño, também conhecido pelo nome de guerra de Timoleón Jiménez (Timochenko), critica com frequência o presidente Juan Manuel Santos, a quem acusa de descumprir importantes cláusulas do acordo de paz.

;A imensa família das Farc está inconformada e indignada;, protesta Lodoño. ;Milhares de combatentes, milicianos, apoiadores clandestinos, militantes políticos, seguidores e comunidades que acreditaram de boa-fé na seriedade do Estado colombiano pedem, da nossa direção, um posicionamento enérgico;, escreveu, em carta endereçada, no fim de setembro, ao chefe de Estado. ;Que se cumpra o prometido e o assinado, presidente Santos. É tempo de paz, o mundo inteiro proclama;, acrescentou, frisando que ;as Farc cumpriram de maneira sagrada a deposição das armas. O que explica, então, o desinteresse oficial para honrar a palavra dada?;

"Eles não darão trégua ao governo na política, como não deram à época do conflito armado. Sempre quiseram chegar ao poder e devem fazer uma oposição ferrenha ao presidente até as eleições do ano que vem"
Alcides Costa Vaz, professor do Instituto de Relações Internacionais da Universidade de Brasília (UnB) e pesquisador do Centro de Estudos Estratégicos do Exército Brasileiro



Memória

Violência endêmica
Do início do século 20 até o fim dos anos 1950, a Colômbia viveu um longo conflito entre liberais e conservadores, cujo período final, entre 1948 e 1959, ficou conhecido como ;A Violência; e deixou mais de 200 mil mortos. Ao longo desse meio século, e do seguinte, de combate às guerrilhas, o pano de fundo das crises foi a desigualdade social.

Impulsionador das primeiras organizações de camponeses e operários no país, o conflito teve sua expressão mais profunda partir de 1948, com o assassinato do candidato liberal à presidência, Jorge Eliécer Gaitán, que gozava de grande popularidade.

A partir dos tumultos na capital, chamados bogotazo, explodiram violentos confrontos pelo interior do país, que se enraizaram nas zonas rurais. Em Marquetalia, um núcleo de 50 ex-guerrilheiros liberais e suas famílias, liderado pelo Partido Comunista, se estabeleceu sob o comando,dentre outros, de Manuel Marulanda. Pacificada a ;Violência;, o governo do conservador Guillermo León Valencia enviou em 1964 o Exército contra o que chamou de ;república independente;.

Marulanda organizou a retirada do grupo, conectou-se com ex-companheiros e fundou o Bloco Guerrilheiro do Sul. Em 1966, a organização passaria a se chamar Forças Armadas Revolucionárias da Colômbia (Farc).

No início dos anos 1980, as Farc assumiram como objetivo a tomada do poder, e, ao fim da década, o surgimento de grupos paramilitares de direita, que combatiam a guerrilha à margem das Forças Armadas, com apoio de proprietários rurais, empresários, políticos e narcotraficantes, acirrou a violência e entrelaçou o conflito com a questão das drogas.

Em 2000, com as Farc em ascensão, os Estados Unidos começaram a prestar assistência militar e econômica ao governo de Bogotá. As Forças Armadas se modernizaram, chegaram a ter cerca de meio milhão de soldados, ao mesmo tempo em que as Farc atingiram 20 mil guerrilheiros.

Os anos seguintes assistiram a uma sucessão de episódios violentos por parte da guerrilha, dos paramilitares e das forças federais. Em 50 anos, morreram mais de 200 mil pessoas ; o mesmo número de mortos dos 10 anos da ;Violência;, que está na raiz da guerrilha. (JV)


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