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Ilha sul-coreana guarda lembranças de massacre de 30 mil na ditadura

A ilha turística de Jeju, no extremo sul do país, viveu horrores sob regime ditatorial. País prepara uma série de atividades para lembrar genocídio que completa 70 anos nesta semana

Renato Alves - Enviado Especial
postado em 01/04/2018 08:00
No monumento, as fotos de centenas de moradores executados pelas milícias enviadas de Seul

Ilha de Jeju (Coreia do Sul) ; Convivendo com as ameaças do vizinho do norte, a Coreia do Sul viveu horrores sob um regime ditatorial. Um dos episódios mais odiosos do período é conhecido como Massacre de Jeju. Ele começou com uma revolta, em 1948, na Ilha de Jeju. Em resposta, o governo central organizou uma implacável perseguição aos insurgentes. Até 1954, agentes do Estado mataram 30 mil pessoas, 10% da população da província. O país prepara uma série de atividades para lembrar o genocídio, que completa 70 anos nesta terça-feira.

Localizada no Estreito da Coreia, no extremo sul do país, Jeju é a maior ilha e a única província autônoma da Coreia do Sul. Após a retirada do Japão, ao fim da Segunda Guerra Mundial, os moradores organizaram comitês para um governo independente. No início, os militares americanos apoiaram os Comitês do Povo, mas logo colocaram colaboradores dos japoneses nos postos de destaque, para contragosto dos residentes da ilha, que haviam sofrido com a ocupação.

Em uma manifestação pacífica contra a interferência dos Estados Unidos, em 3 de abril de 1948, a polícia abriu fogo contra a multidão, em uma rua de Jeju. Três pessoas morreram, incluindo um menino de 10 anos e uma mulher com um bebê no colo. Explodiu uma onda de protestos. Os policiais negaram abusos. Alegaram que a revolta foi organizada por comunistas e simpatizantes do regime norte-coreano, apoiado pela União Soviética. A península acabara de ser dividida entre URSS e EUA.

Fugitivos
O governo sul-coreano enviou a Jeju uma milícia formada por jovens que haviam escapado da Coreia do Norte sob domínio de Kim Il-sung, avô do atual líder norte-coreano, Kim Jong-un. Muitos tinham visto familiares serem torturados, estuprados e assassinados. Alimentavam imenso ódio contra comunistas. Essa milícia tinha a função de polícia na ilha, que o governo sul-coreano considerava um reduto do comunismo. Para se defender, os moradores montaram sua milícia.

À época, houve uma eleição presidencial na Coreia do Sul, que excluiu os moradores de Jeju. Eles consideraram o pleito ilegítimo também porque só havia um candidato na cédula: Syngman Rhee. Homem de extrema confiança dos EUA, o presidente e seus comandados reagiram com mais repressão. Policiais e militares executaram quem eles acreditavam apoiar a milícia local e quem era considerado comunista. Matavam todos os integrantes da família do suspeito. Eliminaram moradores de aldeias inteiras, como em Bukchon. Por medo, muitos ilhéus fugiram.

Desculpas

As autoridades sul-coreanas relutaram por décadas em reconhecer o Massacre de Jeju. Por 50 anos, ele foi tratado como um ;incidente;, até que, no início de 2000, o governo divulgou o resultado de uma investigação sobre os acontecimentos. A maioria das vítimas não apoiava a milícia local, era inocente; oficiais do exército sul-coreano que se opuseram a assassinar os ilhéus perderam o emprego; o exército americano apoiou as ações de Syngman Rhee na ilha.

Em 2006, o presidente Roh Moo-hyun visitou Jeju e pediu desculpas em nome do governo. No ano seguinte começaram os trabalhos de escavação atrás dos restos mortais das vítimas. Eles se concentram no Aeroporto Internacional de Jeju, que recebe anualmente milhares de turistas. Uma das pistas do terminal foi fechada em agosto de 2007. No lugar de aviões, recebeu escavadeiras e arqueólogos. A exumação das vítimas durou até 2009.

Sabia-se que no aeroporto haviam sido enterradas pessoas presas e executadas por soldados em 1949 e 1950. ;Eu não conseguia dormir, porque tinha muitos pensamentos antes da exumação. Pensava sobre o local do enterro, a condição dos restos mortais. Quando escavamos nos lados da pista, foram encontradas centenas de restos mortais;, contou Jo Mi Jo Young, integrante da equipe de arqueologia que trabalhou no aeroporto. Foram resgatados os restos de 390 pessoas. Por meio de testes de DNA, 92 foram identificadas e entregues aos parentes. Estima-se que os restos de mais de 3 mil pessoas seguem desaparecidos.

Casas queimadas
Yang Yoon-Kyung tinha 9 anos quando começaram as perseguições e mortes em Jeju. Moradora da ilha, a família dela buscou abrigo na mata e em cavernas. ;Vi muita bomba cair sobre os vilarejos, vi muita gente ser torturada e morta na rua e no campo, inclusive crianças e mulheres grávidas, enquanto as suas casas e as escolas eram queimadas por tropas dos Estados Unidos;, conta ela, hoje perto dos 80 anos.

Presidente da Associação para as famílias das vítimas em Jeju, Yoon-Kyung cobra punição aos envolvidos no massacre. A sobrevivente não mencionou nenhum nome em suas declarações, mas, por mais de uma vez, citou o exército americano como responsável direto pelos crimes. ;Todos devem ser levados à Justiça, para que nenhum pesadelo como esse aconteça novamente na Terra;, ressaltou a líder comunitária, em entrevista ao Correio, na sede da associação que dirige.

Em outro ponto da ilha, o governo construiu, em uma imensa área verde, um memorial para lembrar as vítimas e as atrocidades cometidas de 1948 a 1954. Em um parque, estão enterrados os restos mortais dos cidadãos assassinados pela milícia enviada por Seul. Além de diversas esculturas, há duas imensas edificações de concreto. Em uma delas, há um museu com a reprodução de cenários do massacre, fotografias e itens das vítimas. Como destaca uma frase em alto-relevo, para que a história não se repita.

Lua de mel


Em Jeju fica o ponto mais alto do país, a Hallasan, uma montanha que se ergue 1.950m acima do nível do mar. Ela abriga um vulcão adormecido há aproximadamente 800 anos. No cume do monte, há uma cratera com um lago de águas transparentes, formado há milhares de anos. A ilha tem ainda cerca de 120 cavernas, que contribuíram para a conquista do título de Patrimônio da Humanidade, concedido pela Unesco.

Cria de Moscou

A União Soviética criou a República Popular da Coreia em 9 de setembro de 1948. Em outubro, Moscou reconheceu Kim Il-sung como o líder de direito de toda a península. Aos 36 anos, ele não tinha experiência política nem era um intelectual. Suas virtudes eram a disciplina, a determinação, a bravura e a lealdade demonstrada ao longo da carreira militar. Respeitado tanto por combatentes coreanos quanto pelo soviéticos, era tido como um líder carismático e pragmático.

Guerra, divisão e ditadura


Após o término da Segunda Guerra Mundial e a divisão da Península Coreana entre Estados Unidos e União Soviética, as Nações Unidas tentaram realizar eleições gerais, mas nenhuma das duas partes demonstrou interesse em se submeter à outra.

Em maio de 1948, no sul, foi proclamada a República da Coreia, após eleições supervisionadas pela ONU. Casado com uma australiana, ex-aluno de Yale, de Princeton e da Universidade George Washington ; todas universidades dos Estados Unidos ;, Syngman Rhee, que vivera exilado nos EUA desde 1940, tornou-se o primeiro presidente da Coreia do Sul, após um pleito marcado por muita violência e corrupção.

Nascido em Whanghae, em 26 de março de 1875, com o país ainda unificado, Syngman Rhee era homem de extrema confiança do governo americano. Durante a ocupação japonesa na Coreia, ele estava nos EUA debatendo pela independência do país.

Ainda no exílio, em 1919, Rhee foi eleito presidente do Governo Provisório da Coreia. Ao retornar a Seul, em 1945, deu início a uma política de terror. Organizou esquadrões da morte para matar ou intimidar políticos rivais. Após ser eleito pela primeira vez, ele permaneceu no poder até o início dos anos 1960, por meio de outros pleitos violentos e fraudulentos.

Em seus governos, Syngman Rhee usou poderes ditatoriais. Entre outras medidas, eliminou a Assembleia Nacional, baniu os opositores do Partido Progressista e executou o seu líder por traição. Também controlou a nomeação dos presidentes da Câmara e dos chefes da polícia. (RA)

(*) O repórter viajou a convite da Associação Coreana de Jornalistas

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