Agência France-Presse
postado em 02/06/2018 11:44
Kot Assadullah, Paquistão - Basharat Ali tinha 15 anos quando suas pernas começaram a falhar. Seu caso é um entre muitos no povoado onde mora, Kot Assadullah, tristemente conhecido no Paquistão pelo número de habitantes com más-formações atribuídas à contaminação da água.Quando era criança e perceberam que não tinha força suficiente para carregar a mochila para o colégio, Basharat Ali foi levado ao hospital, onde os médicos deduziram que sua enfermidade era causada pela água que ingeria, contaminada por arsênico e diferentes metais e minerais.
"Foi um enorme choque para mim. Tive que interromper meus estudos para fazer tratamento", conta esse homem frágil, de 32 anos, com dentes amarelados e muito deteriorados, sentado no telhado de sua casa, a 45km de Lahore, a segunda maior cidade do Paquistão.
Dali, Basharat Ali tem vista das fábricas dos arredores, que produzem plásticos, produtos farmacêuticos e cabos elétricos. Com frequência, são responsabilizadas de contaminar a água que os moradores bebem.
Segundo a Câmara de Indústria e Comércio de Lahore, 90% das empresas despejaram seus resíduos industriais sem tratá-los antes.
Veículos locais noticiaram a situação em Kot Assadullah há mais de dez anos. Mobilizaram-se equipes médicas e especialistas em meio ambiente. Foram escavados novos poços. Mas a situação não melhorou e a água continua contaminada.
Segundo Basharat Ali, pelo menos 200 crianças têm más-formações nos ossos e nos dentes desde o ano 2000. Já adultos, "ficam escondidos em suas casas" e "não recebem nenhuma proposta de casamento", queixa-se o rapaz de 30 anos, que tem uma perna mais curta que a outra e mal consegue caminhar.
"As pessoas nos reconhecem"
A pequena cidade de seis mil habitantes ficou famosa pela tragédia que se abateu sobre sua população. "As pessoas de outros povoados nos reconhecem e nos dizem: ;vocês são de Kalalnwala;", o outro nome pelo qual é conhecida Kot Assadullah, lamenta Muhamad Mujtiar, comerciante de 26 anos.
Em visita recente da AFP, homens, mulheres e crianças faziam fila em frente às torneiras que vertem água filtrada que uma ONG instalou no ano passado.
Uma estação de tratamento pública está em construção. Mas as duas instalações não serão suficientes para atender ao conjunto da população, afirmam os moradores.
As autoridades de Panyab, que tem sua capital em Lahore, se negaram a responder às perguntas da AFP.
Segundo o doutor Khalid Yamil Ajtar, um médico que visitou a região para os poderes públicos, o arsênico pode provocar vômitos, diarreia e problemas intestinais. Também pode afetar fígado, pulmão, rins e, inclusive, todo o sistema gastrointestinal.
A maioria dos pacientes que o consultaram sofriam de neuropatia - disfunção nervosa que pode causar deformações ou o enrijecimento ou o enfraquecimento dos membros -, geralmente vinculada à "água contaminada por toxinas das fábricas dos arredores", segundo ele.
Alguns casos também poderiam ser atribuídos a causas genéticas, afirmou.
Envenenamento
A concentração de arsênico na água é particularmente preocupante no Paquistão. Um estudo chefiado pelo especialista suíço Jo;l Podgorski a partir de 1.200 amostras de água subterrânea coletadas em todo o país mostra que até 60 milhões de paquistaneses poderiam ser envenenados com esse elemento.
A pesquisa, publicada no ano passado, identificou fortes concentrações de arsênico no rio Indus e seus afluentes, com "pontos quentes" em torno de grandes cidades como Lahore e Hyderabad (sul), respectivamente com 12 e 2 milhões de habitantes.
O Conselho Nacional de Pesquisa da Água (PCRWR), uma entidade pública, nega estes resultados, considerando que a amostra é limitada demais, embora tenha admitido a existência de um problema com o arsênico.
Segundo suas próprias análises, feitas desde 2012, entre 69% e 85% das águas do Paquistão estão contaminadas e/ou não estão aptas para o consumo.
"Encontramos arsênico inclusive na água envasada", destacou Lubna Bujari, encarregada da qualidade da água no PCRWR.
Com falta de chuvas regulares, as bombas vão extraindo água de lençóis freáticos mais profundos, onde a concentração de arsênico é mais importante.
A situação é preocupante, mais ainda levando em conta que a população do Paquistão, em pleno auge, sofrerá "escassez absoluta" de água em 2025, segundo estimativas da ONU.
E, no entanto, não existe nenhum plano nacional de descontaminação da água, nem tampouco para preservá-la. Cabe às províncias ocupar-se dos assuntos ambientais, mas estas não conseguem administrar o problema, devido à falta de recursos.
Passaram vinte anos desde que foram detectadas as primeiras más-formações em Kot Assadullah e praticamente nada mudou.
Naveed, um jornaleiro de 25 anos, explica que suas pernas começaram a se deformar quando ele tinha 3 anos. "Não tenho nenhuma esperança", lamenta. "Porque somos pobres e ninguém nos ouve".