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Manifestações contra governo na Nicarágua já deixam mais de 200 mortos

População revive traumas herdados das guerras civis nos anos 1970 e 1980

Agência France-Presse
postado em 10/07/2018 16:35
A população protesta contra o governo de Daniel Ortega, e da primeira-dama e vice-presidente, Rosario Murillo
Quando tinha 16 anos, ele lutou pela revolução nas montanhas da Nicarágua. Ali, viu morrer companheiros e perdeu uma perna, atingido por um projétil RPG-7. Mas nada se compara ao que vive hoje. Não há um dia em que Álvaro não chore desde que mataram seu filho, em 21 de abril passado.

[SAIBAMAIS]Sentado na sala de sua casa simples no bairro de Monimbó, na cidade rebelde de Masaya, Álvaro Gómez revive traumas herdados das guerras civis nos anos 1970 e 1980, assim como muitos nicaraguenses, em meio à onda de violência que deixou mais de 250 mortos em quase três meses.

Seu filho, de 23 anos, que tinha o mesmo nome que ele, trabalhava em uma fábrica e estudava finanças. Morreu em uma barricada em Monimbó, três dias depois do início dos protestos contra a reforma na Previdência Social, que resultaram no pedido de renúncia do presidente, Daniel Ortega, e da primeira-dama e vice-presidente, Rosario Murillo.

"Contam que o agarraram, espancaram, lhe deram um tiro no peito. Foi arrastado já morto. Foram policiais. Quando me avisaram, não me abalei porque achava que meu filho estava trabalhando. Fui ver no necrotério: era ele", contou à AFP, com a voz embargada.

Faz calor. Suor e lágrimas descem pelo rosto de traços indígenas e por alguns momentos o silêncio predomina. Pregado na parede, um quadro negro com cálculos de raiz quadrada, que este professor de física e matemática, de 48 anos, ensina jovens do bairro a resolver.

"Há muito medo de que a história esteja se repetindo. A população demonstra medo com o perigo atual, mas também de voltar à situação que tanto trauma causou no tempo da guerra", explicou à AFP a psicológica Adriana Trillos.


"Sandinista, não danielista"

O professor tinha 9 anos quando triunfou, em 1979, a insurreição popular que, comandada pela Frente Sandinista de Libertação Nacional (FSLN, esquerda), depôs o ditador Anastasio Somoza. Na década de 1980, durante a qual Ortega governou, lutou na guerra entre sandinistas e contrarrevolucionários.

"A família Ortega-Murillo está fazendo o mesmo que Somoza. Sinto coragem porque lutamos pela revolução e mandam matar os filhos e os netos de quem levou Daniel ao poder, em 1979, e depois por mantê-lo lá", criticou.

Paramilitares e antimotins do governo, apoiados por franco-atiradores, têm gerado pânico em cidades e povoados, aonde chegam fortemente armados e encapuzados a desmontar barricadas que, segundo o governo, foram erguidas por "golpistas" e "delinquentes".

Monimbó, símbolo da resistência sandinista e hoje rebelado contra Ortega, ainda tem muitas barricadas e está praticamente sitiado. "Trincheiras são cerradas a partir das 18h", diz um papel colado pelos manifestantes, também encapuzados, em uma barricada perto da casa do professor.

"Sou ferido de guerra e me sinto inútil. Desde a morte do meu filho, sinto impotência e raiva de ver tantas mortes e não poder fazer nada nesta guerra desigual. Eles (as forças de Ortega) andam com armas; os jovens, com pedras e morteiros", declarou o professor, que diz continuar sendo sandinista, mas "não danielista e muito menos murillista".

Sonhos e lembranças

Em Monimbó, muitos sentem a volta do passado. Ángela Alemán, de 69 anos, diz que sua mãe foi baleada e teve vários familiares presos e torturados por Somoza durante a guerra. "Hoje, vivo com angústia porque meus filhos vão para as trincheiras", assegurou.

Segundo a psicóloga, voltaram os temores de "desaparecimentos, prisões arbitrárias, torturas, que os filhos desapareçam e reapareçam mortos".

A sociedade nicaraguense, diz Trillos, tem "sintomas claros de um estresse pós-traumático", que não foi tratado depois das guerras, como são a evasão, a insônia, os pesadelos e a hipersensibilidade e um medo que provocou, inclusive, "um êxodo" nas últimas semanas.

O professor é atormentado por sonhos e lembranças. "Eu sonhei com meu filho: o vi trabalhando, o vi estudando, eu queria ver um homem casado, com família, mas este governo...", diz, sem conseguir terminar, consumido pela dor.

Se vê telefonando para ele, conversando e ouvindo, visitando-o na casa onde morava - a uns 200 metros da dele - ou caminhando juntos - ele com dificuldade - pelas ruas de paralelepípedos do sempre combativo bairro Monimbó.

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