Agência France-Presse
postado em 12/07/2018 17:38
Cerca de 60 passageiros viajam amontoados em uma cabine semelhante a uma jaula. Vários se penduram no estribo. Eles são levados em um dos caminhões que autoridades venezuelanas oferecem como solução para a crise do transporte e que tem causado acidentes fatais.
[SAIBAMAIS]Em vez de proibir esse tipo de transporte por suas condições inseguras, vários governadores e prefeitos aliados ao governo ativaram sua própria frota gratuita de "perreras" (em português, "carrocinhas"), como são chamados esses veículos por serem parecidos aos que eram usados para recolher os cães de rua.
"Amor por Caracas", lê-se nas unidades da prefeitura de Libertador, município de Caracas, onde o presidente socialista Nicolás Maduro, ex-motorista de ônibus, despacha.
Na semana passada, uma comissão do Parlamento, de maioria opositora, denunciou que desde abril foram contabilizadas 55 mortes pelo uso veículos improvisados como as "perreras".
Apenas um acidente de caminhão deixou 16 mortos em maio em Mérida (oeste). Outra vítima foi Fernando Moreno, de 63 anos, que, segundo testemunhas, caiu quando subia em "uma perrera" no dia 15 de junho em La Yaguara (norte).
São "o que há de mais feio. É como que se você montasse em uma jaula de gado, empurra para cá, empurra para lá", comentou à AFP José Miguel, operário de 20 anos que vive em Los Valles del Tuy (periferia de Caracas).
Esses veículos já se proliferaram em mãos privadas antes que as autoridades chavistas aderissem a eles.
Para José Miguel, formalizar o seu uso "é uma piada". "Se vão dar algo, que sejam alguns ônibus. Como dão uma ;perrera;?".
Em defensa dessa alternativa, Víctor Zerpa, motorista desses caminhões, afirma que "a prefeita de Libertador, Érika Farías, os disponibilizou porque os transportadores estão sabotando".
Cabem cerca de 40 pessoas na "perrera" de Víctor, de 60 anos, que exibe duas tatuagens no pescoço, uma do rosto de Hugo Chávez e outra com a assinatura do falecido ex-presidente.
Quebrados pela hiperinflação
Cerca de 90% da frota de transporte público na Venezuela está paralisada diante impossibilidade de arcar com os altos custos das peças de reposição, de acordo com os sindicatos, que o governo acusa de "sabotagem".
"A hiperinflação atinge todos nós. De 12.000 ônibus que havia, restam somente 10%", disse à AFP Oscar Gutiérrez, motorista e dirigente sindical do estado Miranda, onde fica Caracas.
O FMI projeta que a inflação encerrará este ano em 13.800%, em um contexto de escassez de todo tipo de produtos básicos.
Um pneu para um ônibus grande, por exemplo, custa 1 bilhão de bolívares, cerca de 300 dólares no mercado negro.
Entretanto, um ônibus de 30 passageiros rende apenas 5 milhões de bolívares diários (1,50 dólar).
A crise se estende a várias regiões. No estado petroleiro de Zulia, o mais povoado, Henry Morales precisa esperar horas para se movimentar para onde for. "Subi em caminhões de lixo, caminhões de entulho e caminhonetes", relatou o funcionário hospitalar de 51 anos.
Alguns motoristas de ônibus chegaram ao extremo de trabalhar somente nas horas de menos calor para aumentar a vida útil dos pneus, conta Gutiérrez.
A frota venezuelana é uma das mais velhas da região. "Os mais novos foram importados pelo governo em 2015 e já há um cemitério desses ônibus. O mesmo Estado não conseguiu mantê-los", acrescentou.
Doente despejado
A escassez de dinheiro é outra dor de cabeça. Uma passagem urbana pode custar 30.000 bolívares, mas os bancos só entregam 100.000 por dia.
Entre a falta de ônibus e passagens, muitos optam pelas "perreras", que são gratuitas.
"Prefiro me amontoar em caminhões do que andar tantas horas", justifica Ruth Mata, comerciante de 52 anos que precisa percorrer vários quilômetros a pé até a sua casa em Caracas.
As "perreras" se somam a outros meios de transporte, como os caminhões de carga, que durante o dia transportam alimentos e de tarde, pessoas.
"Vivemos uma agonia", disse Humberto Navarro enquanto paga a passagem ao motorista de um desses veículos.
Os problemas de mobilidade colapsaram o metrô de Caracas, porque os absurdos preços dos bilhetes não cobriam os custos de operação.
No pobre bairro caraquenho de Petare, Candelaria Segovia, de 52 anos, se segura firmemente a uma barra da "perrera" para não cair. "Se não temos dinheiro, não nos deixam subir nos ônibus, os caminhões são mais baratos", conta à AFP.
Para Óscar Gutiérrez, motorista há 35 anos, o problema piorará. "Estamos como um doente despejado".