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Boatos sobre sequestradores de crianças têm incentivado linchamentos

Pelo menos 30 pessoas foram assassinadas. Especialistas temem que o fenômeno saia do controle e cobram ações efetivas do governo

Rodrigo Craveiro
postado em 22/07/2018 07:00
Gopal Chandra e Radhika com a foto do filho, Nilotpal, linchado com um amigo no distrito de Karbi Anglong, no estado de AssamTudo o que restou ao casal Gopal Chandra Das, 68 anos, e Radikha foram fotos e a saudade do filho. Em 8 de junho passado, o músico Nilotpal Das, 29, e o amigo e empresário Abhijeet Nath, 30, visitavam o distrito de Karbi Anglong, no estado de Assam, quando foram emboscados por uma multidão armada com bastões de bambu, machetes (um tipo de facão) e pedras. Os dois tornaram-se estatísticas de um fenômeno que começa a fugir do controle das autoridades indianas: os linchamentos provocados por rumores sobre a ação de sequestradores de crianças disseminados por meio do WhatsApp, a principal plataforma digital da Índia, com 200 milhões de usuários. Os assassinatos começaram em maio passado, quando sete homens foram linchados depois de serem confundidos com traficantes de crianças no estado de Jharkhand. Desde então, o governo indiano contabilizou cerca de 30 vítimas.

No início deste mês, cinco operários foram mortos por três mil pessoas depois que um deles foi visto conversando com uma menina, em Maharashtra. Cofundador da Savetheinternet.in, campanha pela neutralidade da internet na Índia, e fundador do MediaNama, publicação sobre o ecossistema digital no país, Nikhil Pahwa explicou ao Correio que os linchamentos ocorrem nos subúrbios de metrópoles como Nova Délhi, Mumbai, Bangalore, Chennai e Calcutá. ;É difícil explicar o motivo, mas, essencialmente, cada mensagem é personalizada para a região em que será enviada;, afirmou. No caso de Maharashtra, circularam cinco vídeos manipulados. O temor sobre os sequestros de crianças não é infundado: entre 2015 e 2016, houve aumento no número desse tipo de crime, de 42 mil para 54,7 mil.

Pratik Sinkha, cofundador da Alt News ; organização não governamental que vistoria sites e redes sociais em busca de informações inverídicas na Índia ;, admitiu à reportagem que os rumores têm sido lugar-comum na internet. ;Existe um medo constante. O conteúdo dos boatos explora o vídeo originário do Paquistão (veja quadro), além de imagens de pessoas mortas e abandonadas em poças de sangue;, comentou. ;A polícia tenta educar as pessoas a não acreditar nos boatos. Mas nada tem sido feito de forma organizada. Por isso, a situação se tornou tão ruim. Depois das sete mortes em Jharkhand, nenhuma providência foi tomada por muito tempo;, acrescentou.

Pahwa concorda com o fato de que as autoridades não sabem como conter os linchamentos. ;As pessoas fazem ;justiça; com as próprias mãos quando creem que a polícia não pode ajudá-las ou não as perseguirá caso participem do crime. Estamos lidando com a incapacidade da polícia das pequenas cidades em lidar com multidões;, lamenta. De acordo com ele, a reação padrão do governo tem sido cortar o acesso à internet para prevenir a disseminação dos rumores. A Índia registra o maior índice de desconexões no mundo. ;Ao conversar com autoridades, percebi que muito disso se deve ao fato de os governos locais ter medo de os rumores saírem do controle e a situação se tornar explosiva. Em 2016, houve 36 desligamentos da internet; em 2017, foram 70. O mesmo número deste ano.;

Padrão

Manish Singh, jornalista em Nova Délhi que tem investigado o fenômeno, disse ao Correio que as mensagens viralizadas seguem um padrão. ;Elas aludem a crenças políticas e religiosas extremas. É altamente provável que mais gente tenha morrido. A maioria das pessoas comprou um smartphone e ficou on-line pela primeira vez. Há a percepção crescente de que tudo o que veem é verdade;, afirmou. Segundo o repórter, ;atores ruins; abusam da plataforma para espalhar a propaganda a dezenas de milhares de pessoas.

O Facebook, proprietário do WhatsApp, divulgou que, no último réveillon, mais de 75 bilhões de mensagens foram trocadas em todo o mundo, 20 bilhões somente na Índia. O governo indiano ameaçou tomar ações judiciais contra o WhatsApp caso a plataforma falhe em apresentar soluções efetivas para debelar a violência. ;É injusto que as autoridades indianas coloquem toda a responsabilidade sobre o WhatsApp. As pessoas têm de assumir alguma culpa;, alertou Singh.

Conversas limitadas

O aplicativo de mensagens instantâneas WhatsApp anunciou anteontem que limitará as conversas na Índia, com o objetivo de conter a disseminação de notícias falsas. Os linchamentos fizeram com que o governo indiano processasse o aplicativo de propriedade do Facebook, ao considerar que a disseminação de notícias falsas também era ;sua responsabilidade;. Diante da pressão do governo, o WhatsApp anunciou que suprimirá a possibilidade de enviar uma mensagem para várias conversas ao mesmo tempo e que tentará fazer que uma mesma mensagem seja enviada apenas cinco vezes. O cursor de transferência rápida também será eliminado.

200 milhões
Total de usuários do WhatsApp na Índia

O boato que incita o ódio


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1 - A realidade distorcida
O vídeo enviado a milhões de indianos supostamente mostra dois homens em uma motocicleta sequestrando uma criança. Ao verem a cena, três outros garotos correm atrás da moto.

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2 - A verdade
O vídeo, na realidade, faz parte de uma campanha de segurança paquistanesa e, em outro trecho, mostra o sequestrador ;devolvendo o garoto;. Ele mostra uma faixa com a frase: ;Leva apenas um momento para raptar uma criança das ruas de Karachi;. Toda a segunda parte da gravação foi eliminada.

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3 - A mensagem no WhatsApp
Um aviso tem sido difundido pelo WhatsApp em Bangalore. ;Cerca de 200 sequestradores de crianças acabam de chegar a Bangalore. Dez deles foram capturados. Os sequestradores afirmaram que as férias de verão são o melhor momento. Por favor, sejam vigilantes e tomem conta de seus garotos.

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4 - A contaminação da mídia
Algumas emissoras de TV fomentaram a informação falsa de que 5 mil sequestradores tinham desembarcado no sul da Índia. Os boatos custaram a vida de várias pessoas. Kaalu Ram, 26 anos, foi um dos linchados. Ele havia chegado a Bangalore em busca de emprego. Foi ;confundido; com um sequestrador de crianças, amarrado pelos pés e pelas mãos, linchado e arrastado pelas ruas.

Pontos de vista

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Por Pratik Sinkha

Elemento de perda

;Os linchamentos remontam a maio do ano passado, no estado de Jharkhand, quando sete pessoas foram mortas. Depois disso, houve longo intervalo sem registros de rumores no WhatsApp. Há poucos meses, os linchamentos tornaram a ocorrer. Até hoje, foram cerca de 30 mortes. Nós estamos rastreando os rumores e tentando entender o fenômeno. O que ocorre é que, nos últimos três anos, mais partes da Índia ganharam acesso à internet. A rede se tornou barata. Os rumores que levaram aos linchamentos têm circulado em muitas dessas áreas rurais ; algumas desprovidas de eletricidade. Os rumores incluem o elemento de perda pessoal. A mensagem é: ;Sua criança será sequestrada;. A falta de eletricidade inviabiliza que as pessoas chequem as informações. O governo fracassa em conscientizar os cidadãos de que são apenas boatos.;

Cofundador da Alt News, uma ONG que vistoria sites e redes sociais em busca de informações enganosas na Índia

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Por Nikhil Pahwa

Tensões religiosas

;Alguns dos rumores são motivados politicamente. Os distúrbios geralmente ocorrem porque tensões religiosas são ventiladas. Os boatos têm sido disseminados nos formatos de áudio, vídeo e texto. As informações falsas podem ser políticas, religiosas, econômicas, sociais ou médicas. Não há como identificar a fonte. O WhatsApp não permite. É importante lembrar que informação incorreta não se trata de ilegalidade. A incitação à violência e o discurso de ódio é que são proibidos. A Índia registra 80 milhões de novas conexões de internet a cada ano. Somos a segunda maior base de usuários de internet no mundo. Quando recebem uma mensagem de uma fonte fidedigna, os indianos pensam que a pessoa verificou a informação. A maioria dos indianos tem repassado a informação sem checá-la.;

Fundador e editor do MediaNama, publicação sobre o ecossistema digital na Índia, e cofundador do Savetheinternet.in, campanha pela neutralidade da internet na Índia

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