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Primavera de Praga, marco da luta contra a dominação soviética, faz 50 anos

Meio século atrás, o país dominado pela União Soviética e submetido ao comunismo totalitarista ensaiou várias reformas liberais. O evento, conhecido como Primavera de Praga, foi esmagado pelos tanques de Moscou e do Pacto de Varsóvia

Rodrigo Craveiro
postado em 20/08/2018 06:00
Ativista exibe bandeira tchecoslovaca salpicada de sangue das vítimas
Em 1968, o mundo fervilhava indignação e mudanças. Na França, a revolta contra o consumismo e contra o capitalismo levou milhões a um movimento paredista e a protestos sem precedentes. Nos Estados Unidos, o ativista Martin Luther King Jr. e o senador Robert Kennedy foram assassinados, enquanto no Vietnã as forças americanas se viram atoladas no lamaçal de uma batalha sangrenta. Em meio à Guerra Fria e sob domínio absoluto da União Soviética (URSS), a Tchecoslováquia pretendia reduzir a influência de Moscou e implantar um ;socialismo de face humana;. Ao assumir o Partido Comunista Tchecoslovaco, Alexander Dubcek (1921-1992) pôs fim à censura; promulgou um conjunto de reformas políticas liberais para conceder a automia à Eslováquia; abriu caminho para a democratização e beneficou vítimas de expurgos políticos durante o regime de Joseph Stálin.

O movimento, conhecido como Primavera de Praga, foi esmagado pelos tanques e pelos milhares de soldados dos países-membros do Pacto de Varsóvia (Bulgária, Polônia, Hungria e Alemanha Oriental), comandados pelo Kremlin, que invadiram a capital tcheca em 20 de agosto.

Para especialistas consultados pelo Correio, meio século atrás, erros de cálculo de líderes da Tchecoslováquia impediram o rasgo na Cortina de Ferro. ;A mudança não poderia ocorrer porque o meu país fazia parte do Bloco Oriental. Moscou não permitiria outro sistema político em uma de suas nações satélites;, afirma Michal Stehlík, historiador da Faculdade de Filosofia da Universidade Carolina de Praga. Ele lembra que as demandas de abertura política e democratização fatalmente terminariam com um pedido de eleições livres. ;Nesse cenário, os comunistas perderiam o monopólio do poder. Provavelmente, os comunistas tchecoslovacos não imaginaram essa possibilidade. Eles foram arrastados para o evento, que terminou de modo trágico para si mesmos e para toda a sociedade;, acrescenta.

Kieran Williams, autor de The Prague Spring and its aftermath (;A Primavera de Praga e suas consequências;), concorda com Stehlík e explica que Dubcek superestimou a sua habilidade de permanecer no controle da situação e avaliou mal o quanto de liberdade de ação os soviéticos lhe dariam. ;Ele não percebeu que Moscou permitiria uma certa quantidade de experimentação do sistema econômico, mas não do político. Mesmo quando Leonid Brejnev, secretário-geral do Comité Central do Partido Comunista da URSS, e outros líderes soviéticos emitiram claros alertas, Dubcek não compreendeu que Moscou recorreria a uma força esmagadora;, comenta. Em agosto de 1968, Praga e o restante do país pareciam tão calmos que as autoridades não viram motivos para demandar a ;ajuda fraternal; das nações vizinhas.

Anseios


;A Primavera de Praga mostrou que a população tcheca queria um sistema político mais aberto e democrático, e um sistema econômico mais flexível e sensível às necessidades da sociedade ; centralmente planificada, com elementos de forças do mercado;, emenda Williams, também cientista político da Drake University (em Des Moines, no estado de Iowa). A supressão forçada do movimento acabou por desacreditar a noção de ;socialismo de reforma;. ;Até 1989, houve demanda pela disputa multipartidária em eleições livres. A invasão do Pacto de Varsóvia também contribuiu para o fim da tradicional russofilia nas sociedades techa e eslovaca, fazendo com que elas se voltassem mais firmemente para a Europa Ocidental.;

Moradores de Praga cercam e impedem avanço de tanques da União Soviética: durante ocupação, os cidadãos adotaram táticas pacifistas de resistência

Segundo Stehlík, a ocupação soviética destruiu as esperanças de ruptura com 20 anos de comunismo totalitarista. Em parte, ele culpa a elite política da Tchecoslováquia que, decepcionada, começou a cooperar pelo retorno da ditadura. ;Os resultados foram uma maior frustração da sociedade e a falta de confiança nos políticos, ainda não completamente restabelecida;, avalia. Ele classifica de ;excepcionais; os eventos da Primavera de Praga, por terem ocorrido dentro do bloco soviético, oferecendo esperança de se moldar alguma forma de socialismo democrático.

;O momento mais importante foi, com certeza, o cancelamento da censura. Após duas décadas, a opinião pública pôde obter informação real sobre os crimes cometidos pelo Partido Comunista após 1948: dados sobre prisioneiros, execuções e processos políticos. O mais poderoso, no instante, foi o fim trágico do fenômeno, com a invasão dos tanques e exércitos do Pacto de Varsóvia;, disse Stehlík. A brisa de liberdade custou a vida de 82 tchecoslovacos ; 800 ficaram feridos.

Meses de tensão


1968

Janeiro
Alexander Dubcek toma as rédeas do Partido Comunista tchecoslovaco.

Março
No dia 30, Ludvik Svoboda é eleito presidente da República da Tchecoslováquia.
O chefe de Estado anuncia várias reformas: a abolição da censura, a liberdade de reunião e associação, mudanças econômicas, entre outras.
A União Soviética faz uma sucessão de advertências e de ultimatos. Finalmente, decide fazer uma intervenção militar.

Agosto
Às 23h do dia 20, tropas do Pacto de Varsóvia cruzam a fronteira da Tchecoslováquia.
No dia seguinte, 200 mil soldados são mobilizados em solo thecoslovaco. O contingente rapidamente aumenta para 600 mil.
Às 4h59, a Rádio Praga anuncia que a capital e o resto do país estão sob ocupação.
Durante os primeiros dias de intervenção militar soviética, centenas de pessoas são assassinadas.
No dia 22, Dubcek e outros dirigentes são presos pelo Exército Vermelho nas primeiras horas de ocupação e levados para o Kremlin. Svoboda é transferido no dia seguinte.
Em 26 de agosto, depois de quatro dias de negociações intensas, é assinado o Protocolo de Moscou, colocando a Tchecoslováquia sob tutela soviética.

Pontos de vista


Por Kieran Williams

Lembrança dolorosa

;A Primavera de Praga simbolizou a visão de um tipo de governo socialista democrático, o qual parecia viável, mas se mostrou permissível ante os limites da tolerância soviética à diversidade e à experimentação em sua esfera de influência. Tornou-se dolorosa lembrança da divisão da Europa e da inabilidade do Ocidente em ajudar, por causas das regras da Guerra Fria e do desejo de fazer progresso com o controle de armas de Moscou.;

Autor de The Prague Spring and its aftermath (;A Primavera de Praga e suas consequências;) e professor da Drake University (em Iowa)

Por Michal Stehlík

Demandas mais radicais

;A duração da Primavera de Praga dependeu da decisão da União Soviética de intervir. Moscou não poderia permitir mudanças em relação à democracia em um de seus vassalos. A URSS e outros países alertaram os comunistas da Tchecoslováquia antes da democratização. A situação fugiu do controle dos comunistas. Em abril, eles prepararam o Programa de Ação, mas as demandas da sociedade foram radicais. Aliados de Dubcek foram incapazes de responder.;

Historiador tcheco da Faculdade de Filosofia da Universidade Carolina de Praga

Curiosidades


Jornalismo resistente

Na manhã de 21 de agosto de 1968, a âncora da TV Czechoslovak Kamila Mouckova (foto), hoje com 90 anos, dirigia até a emissora quando viu o primeiro cadáver nas escadarias do Comitê Central do Partido Comunista. No trabalo, pediu calma aos colegas e começou a reportar as manifestações espontâneas e as mortes. ;Eu estava terrivalmente furiosa e espumava pela boca. Não podia acreditar no que eles (soviéticos) tinham feito; , contou. As tropas de Moscou invadiram a emissora, apontaram uma arma para os jornalistas e os arrancaram de lá. Mouckova e os colegas continuaram transmitindo de um abrigo nuclear por sete dias, debaixo de uma fábrica de eletrônicos de Praga.

Flores contra tanques

Resistência passiva. Esta foi a tática adotada e batizada pelo governo tchecoslovaco para confrontar os exércitos invasores. Desarmados, manifestantes cercaram os tanques de guerra e ofereceram flores aos soldados. A medida foi reivindicada pelas emissoras de rádio e de TV, ao denunciarem a violência cometida pelas forças ocupantes. As táticas incluíam correntes humanas sobre pontes, para impedir o avanço das tropas; o uso de sirenes, cornetas e campainhas para incomodar os militares e anunciar greves de uma hora; boicotes de alimentos e água aos soldados, entre outros.

Placas trocadas

Uma das formas de resistência passiva mais curiosas fez com que viajar pelo território da Tchecoslováquia se transformasse em um inferno para o contigente do Pacto de Varsóvia. Os tchecos removeram as placas de ruas e rodovias e pintaram aquelas indicativas de números de prédios. Muitos pequenos vilarejos se ;rebatizaram; com os nomes de ;Dubcek; ou ;Svoboda; ; menções ao líder do Partido Comunista e ao presidente da Tchecoslováquia. Era comum que colunas de tanques se perdessem em áreas rurais do país.

Martírio com fogo

Jan Palach, 20 anos, era estudante de história e de economia política pela Universidade Carolina de Praga. Assim que o sonho do comunismo de face humana foi sepultado, com a União Soviética esmagando as reformas liberais de Alexander Dubcek, ele decidiu atear fogo ao próprio corpo na Praça Wenceslas, em 16 de janeiro de 1969. Palach morreu três dias depois e se transformou em símbolo antiocupação. Tanto que o seu funeral se tornou um grande protesto contra as forças de Moscou.

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