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Ataques com Novichok colocam serviços secretos de Moscou em suspeita

Especialistas e russo que ajudou a inventar a substância dizem ao Correio que o Kremlin dispõe dos meios e tem os motivos

Rodrigo Craveiro
postado em 24/09/2018 06:00
Especialistas e russo que ajudou a inventar a substância dizem ao Correio que o Kremlin dispõe dos meios e tem os motivos
Viktor Yushchenko, então candidato a presidente da Ucrânia e adversário político de Moscou, jantava com o chefe do serviço de segurança de seu país quando ingeriu o pesticida dioxina, em setembro de 2004. O corpo inteiro foi tomado por inflamações e pela formação de pus. Como sequela, o rosto ficou desfigurado. Alexander Litvinenko, tenente-coronel do Serviço Federal de Segurança (FSB, a antiga KGB) que desertou para o Reino Unido, estava em um hotel de Londres quando bebeu uma xícara de chá contendo polônio-210, altamente radioativo, em 1; de novembro de 2006. Morreu três semanas depois. Serguei Skripal, ex-oficial da inteligência militar russa que se tornou agente duplo, foi encontrado em 4 de março deste ano com a filha, na cidade inglesa de Salisbury, ambos desacordados. Os médicos concluíram que eles foram contaminados com Novichok (;novato;, em russo), um agente neurotóxico.

Em Amesbury, a 12km de Salisbury, Charlie Rowley presenteou a companheira, Dawn Sturgess, com um frasco de perfume, em 30 de junho passado. Após ela usar o produto, ambos foram hospitalizados; a mulher não resistiu e morreu: o frasco continha Novichok. Os casos lembram roteiros de filmes de espionagem. Segundo especialistas, todas as pistas incriminam o governo do presidente russo, Vladimir Putin. Morador de Anapa, no sudoeste da Rússia, Vladimir Uglev ; um químico que ajudou a desenvolver o Novichok, nos anos 1970 ; disse ao Correio não ter dúvidas do envolvimento dos serviços secretos russos (leia entrevista).

;Não existe explicação plausível para que Moscou não esteja envolvida. O governo Putin tem motivos e armas;, explicou à reportagem Hamish de Bretton-Gordon, especialista em armas químicas e ex-comandante do Regimento Nuclear, Químico e Radiológico do Reino Unido. Ele julga improvável que o estoque do agente neurotóxico seja um legado da era soviética. Segundo Hamish, depois de 20 anos, o Novichok perde a pureza e a toxicidade. ;Agora, sabemos que o Novichok usado contra os Skripal era 100% puro e absolutamente tóxico;, disse. ;Os russos queriam transmitir uma mensagem interna e externa muito forte: quem os trair será eliminado em qualquer lugar do planeta. Também é uma advertência ao Ocidente, neste período de tensão elevada, de que a Rússia não pode ser menosprezada.;

Andrea Sella, professor de química inorgânica da University College London, concorda que todas as evidências incriminam o governo russo. ;Os agentes Novichok jamais foram declarados pelo Kremlin e, enquanto sua existência era fonte de suspeita por agências de inteligência ocidentais, o programa colaborativo de destruição das armas químicas se focou em milhares de toneladas de substâncias conhecidas;, lembrou ao Correio. O Novichok, até então raramente empregado, foi ignorado. Sella disse que tudo indica que a Rússia tenha mantido variantes ;mais robustas, fáceis de se manusear e mais persistentes;.


Preocupação


O governo Putin negou de forma categórica estar implicado no complô contra os Skripal e no incidente em Amesbury, mas tergiversou sobre o assunto. ;É claro que estamos preocupados com o fato de essas substâncias terem sido usadas repetidamente na Europa. No entanto, não temos informações sobre quais substâncias foram empregadas ou como foram utilizadas;, declarou o porta-voz do Kremlin, Dmitry Peskov. ;A Opaq (Organização para a Proibição de Armas Químicas) fez duas investigações sobre o caso Novichok e concordou com as conclusões da premiê britânica, Theresa May, de que não há explicação plausível, exceto a de que tenha sido um ataque russo;, comentou.

Andrea Sella reitera que armas químicas e venenos exóticos são ferramentas do terror, desenhadas para semear o medo. ;A mensagem é: ;nós podemos pegá-lo a qualquer momento e em qualquer lugar;. Ao usar um veneno exótico, desacelera-se a resposta médica, pois leva tempo para identificar a substância responsável pela intoxicação. O único culpado plausível é o governo russo, que tem os meios e os motivos para agir dessa forma;, acrescentou o especialista da University College London, repetindo o raciocínio de Hamish. De acordo com ele, a Rússia tem precedentes sugerindo que a vingança contra traidores ocorrerá, eventualmente, algumas vezes de modo exótico. ;É hora de os governos levarem a sério a ameaça do governo russo;, aconselhou.


Entrevista/Vladimir Uglev

Vladimir Uglev

Entre 1975 e 1976, o cientista russo Valdimir Uglev, 71 anos, sintetizou o A-234 e o A-232, agentes neurotóxicos conhecidos como Novichok, dentro de um programa de armas químicas mantido pela então União Soviética. O A-234 foi usado no ataque contra o ex-espião Sergei Skripal e a filha Yulia, em Salisbury (Reino Unido), em 4 de março. Em entrevista exclusiva ao Correio, por e-mail, Uglev acusou o governo da Rússia pela tentativa de assassinato e contou que, em abril passado, sofreu um atropelamento suspeito. ;O Kremlin e toda a sua gangue se comprometeram tanto que não é possível crer que alguém esteja tentando incriminar o governo russo;, afirmou.

Nos últimos anos, o Novichok e o polônio-210 foram usados contra inimigos do governo russo. Por que as armas químicas têm sido associadas ao Kremlin?
O tema consta de nossas estruturas (organizações) especiais. O FSB (Serviço Federal de Segurança, a antiga KGB) e o GRU (Departamento Central de Inteligência) têm acesso a essas substâncias. Mas eu creio que elas esperavam matar sem barulho e sem sujeira (sem chamar a atenção). O envenenamento com o polônio-210 é difícil de ser determinado ainda que a morte não ocorra tão rapidamente. Os sintomas da exposição a esse elemento radioativo se assemelham aos de sintomas de lesões provocadas por compostos de tálio. Uma substância como o A-234 (organofosfato usado como agente nervoso e conhecido como Novichok) pode matar em 10 minutos ou ainda mais rápido, mas precisa ser manuseado com um especialista verdadeiro. Quanto ao integrante do grupo russo Pussy Riots, os médicos alemães suspeitam que ele foi envenenado com escopolamina.

Qual foi o seu papel no desenvolvimento do Novichok?
O Novichok A-230 foi primeiramente obtido em 1972 por meu líder, Kirpichev Peter Petrovich. Eu desenvolvi o A-234 e o A-232 em 1975 e 1976. O A-242 foi obtido por Kirpichev em 1980. No total, foram sintetizadas mais de 200 substâncias dessa classe (Novichok). As mais promissoras foram a A-234 e a A-242. A A-234 é suficientemente líquida para ser transportada, enquanto a A-242 é um substância cristalizada, sólida. Ambas foram projetadas para serem até 10 vezes mais eficientes como munições químicas do que o modelo americano do gás VX.

O senhor sofreu algum tipo de ameaça do governo russo por revelar detalhes do programa químico?
Desde 1993, estou sob vigilância do FSB por ter concedido mais de 200 entrevistas a emissoras de TV e jornais. Em abril de 2018, dias depois de uma entrevista a uma televisão alemã e à revista Der Spiegel, fui atropelado por um carro em um cruzamento, em Anapa (Rússia). Saltei antes do impacto e caí sobre o para-brisa. Agora, tenho de ser ainda mais cauteloso.

Qual é a situação dos estoques de armas químicas russas?
Eu desconheço. Mas a Rússia assinou e ratificou a Convenção sobre a Proibição de Armas Químicas. Tenho buscado chamar a atenção da Opaq (Organização para a Proibição de Armas Químicas) desde 1993, mas, infelizmente, não houve resposta. Depois do ato terrorista contra Skripal e do envenenamento em Amnesbury, talvez me escutem.

É possível que algumas armas químicas russas tenham sido roubadas pela oposição e usadas para incriminar o Kremlin?
Na minha opinião, o Kremlin e toda a sua gangue já se comprometeram tanto que não é possível crer que alguém esteja tentando incriminar o governo russo. É uma ideia completamente sem sentido!

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