postado em 25/05/2019 04:07
Duas faces nafrente externa
A visita do vice-presidente Hamilton Mourão à China consolidou, entre muitos dos interlocutores externos do país, uma espécie de dualidade de imagens projetada desde janeiro pelo novo governo. O presidente Jair Bolsonaro dedicou os primeiros meses de mandato a afirmar o realinhamento da diplomacia brasileira com os Estados Unidos, movimento consubstanciado nos últimos dias com o rebatismo da Embraer como Boeing Brasil. Já o general vice expôs em Pequim um viés algo distinto, com elementos da política externa do período Lula-Amorim, voltada para a inserção internacional do país no âmbito de uma constestação à geopolítica unipolar traçada por Washington, no âmbito da articulação do Brics, parceria dos dois países com Rússia, Índia e África do Sul.
As colocações de Mourão sobre o Brics, no entanto, fazem harmonia com o tom do presidente e do chanceler Ernesto Araújo para o cenário sul-americano. Lá como cá, o mote do Brasil é o foco comercial, colocado à frente da concertação política ; tanto mais com aquele que é reconhecido como o maior parceiro do país. Foi em nome dessa reorientação que o país deu contribuição decisiva para enterrar a Unasul, cria de Lula, Hugo Chávez e do casal Kirchner, e substituí-la pelo Prosul. Foi nesse mesmo diapasão que o vice-presidente expôs a disposição do Brasil para integrar o projeto chinês da Nova Rota da Seda ; a retomada do tráfego comercial que aproximou Oriente e Ocidente na Antiguidade greco-romana.
Entre incursões pela cooperação no programa espacial e menções ao país como algo mais que ;uma lojinha; para a China, o general começou a aplainar o terreno para a visita do presidente a Pequim, prevista para o segundo semestre. Será o momento para apreciar o espaço reservado ao império ascendente nesse novo capítulo da diplomacia brasileira.
Muy amigos...
É com igual interesse que as atenções se voltam, nas próximas semanas, para os preparativos que antecedem a viagem de Bolsonaro a Buenos Aires. Nas últimas décadas, tradicionalmente, a Argentina tem sido o primeiro destino dos presidentes brasileiros, um gesto que simboliza a importância da relação bilateral para ambos os países. No presente, ao fim de um longo período em que os dois governos capitanearam a empreitada de integração configurada pela Unasul, o Planalto e a Casa Rosada têm em comum a prioridade emprestada à crise política na Venezuela. O presidente brasileiro e o colega Mauricio Macri tratam de assumir a dianteira nas articulações diplomáticas para o afastamento de Nicolás Maduro, embora cada qual enfrente os próprios desafios domésticos.
...ou nem tanto
A visita ao vizinho prioritário na política externa pós-regime militar se fará sob o impacto das declarações inusualmente explícitas do capitão sobre a eleição presidencial de outubro, na qual Macri tentará o segundo mandato. Rompendo a longa tradição de distanciamento em relação à disputa, Bolsonaro pronunciou-se de maneira clara contra o possível retorno ao poder de Cristina Kirchner, um resultado que, segundo o presidente, poderia transformar a Argentina em ;outra Venezuela;.
A decisão da ex-presidente de apresentar-se como candidata a vice na chapa da esquerda para as primárias do justicialismo, encabeçada pelo amigo e aliado Alberto Fernández, muda pouco as perspectivas futuras para as relações, caso Macri não consiga vencer a própria impopularidade. Com o peronismo de volta à Casa Rosada, o governo de direita no Brasil perderá um interlocutor importante e parceiro essencial no projeto de redesenhar a geopolítica regional da América do Sul.
Cada macaco no seu
No entorno latino-americano, a declaração explícita de Bolsonaro contra a ex-presidente argentina causou surpresa e uma dose de desconforto, pela maneira como caracterizou uma interferência sem reservas no processo eleitoral de um outro país ; tanto mais, de um vizinho considerado amigo e sócio prioritário. Para um emissário que acompanha há algum tempo a vida política do país, o ;veto; a Cristina Kirchner recordou um clássico dos anos 1970 no qual Gilberto Gil proclamou, como conselho, ;cada macaco no seu galho;.
Fado tropical
Repercutiu intensamente, entre a intelectualidade lusitana, a escolha de Chico Buarque para o Prêmio Camões, que distingue anualmente obras literárias em língua portuguesa. Não apenas por se tratar do segundo autor brasileiro laureado nos últimos anos, depois de Raduan Nassar, em 2016. Ambos são notórios opositores do atual governo brasileiro e alvo de artilharia cerrada do campo bolsonarista.