postado em 31/05/2019 04:06
A semana termina, na Colômbia, com festa para os ex-guerrilheiros das Farc e dissabores para o presidente Iván Duque, forte crítico dos acordos de paz firmados há três anos pelo antecessor, Juan Manuel Santos, para pôr fim a meio século de conflito armado. Por ordem da Corte Constitucional, foi libertado ontem o ex-comandante rebelde Jesús Santrich, detido desde maio de 2018 sujeito a extradição para os Estados Unidos, onde é acusado de narcotráfico. Contrariando a expectativa do governo, a instância máxima da Justiça reclamou para si a autoridade para julgar Santrich, a quem reconheceu a condição de congressista pela Força Alternativa Revolucionária do Comum, partido com a mesma sigla formado pela organização depois de depor armas.
Em outra derrota para Duque, a Corte Contitucional derrubou, por sete votos contra um, as reformas pretendidas por ele nos termos do acordo de 2016, que dividiu o país e foi tema central da eleição presidencial de 2018. A decisão obriga o chefe de Estado a promulgar sem objeções a lei que estabelece a Justiça Especial de Paz para julgar os crimes atribuídos aos participantes do conflito armado ; guerrilheiros e paramilitares de direita que os combatiam à margem das Forças Armadas. A instância extraordinária tinha determinado a libertação de Santrich há duas semanas, mas ele foi recapturado quando deixava a prisão, no último dia 7, por ordem do Ministério Público, que invocou novas acusações feitas ao ex-comandante das Farc por crimes supostamente cometidos depois da assinatura da paz.
;Respeitamos a decisão do tribunal, mas achamos lamentável;, respondeu, em entrevista coletiva, a porta-voz do Departamento de Estado dos EUA, Morgan Ortagus. Ela garantiu que a Justiça americana cumprira com os requisitos de extradição estabelecidos com a Colômbia e classificou como ;muito graves; as acusações contra Santrich, suspeito de conspiração para enviar 10 toneladas de cocaína para os EUA. Duque, de sua parte, assimilou a derrota em ambas as questões. ;Acato as decisões tomadas pela Corte Constitucional, como colombiano e defensor da legalidade;, declarou. No entanto, referiu-se ao ex-comandante da guerrilha como ;um mafioso;.
Recebido com festa na sede da Farc, em Bogotá, Santrich, que tem 52 anos e é deficiente visual ; decorrência de uma enfermidade da juventude ;, enviou no mesmo dia ao tribunal supremo uma carta na qual se compromete a atender a todas as convocações da Justiça para depoimentos e audiências. Com o dirigente em liberdade, o partido se movimenta agora para que ele possa assumir ;de forma imediata; a cadeira de deputado que lhe foi destinada pelo acordo de paz.
Embora não tenha recebido votos suficientes para tal na eleição legislativa de 2018, a Farc teve asseguradas de antemão, como parte da desmobizilação, cinco cadeiras na Câmara e cinco no Senado, por dois mandatos de quatro anos. ;Estamos muito contentes com essa decisão, que nos parece restabelecer os direitos de Jesús Santrich que tinham sido violados;, disse o senador Carlos Antonio Lozada, outro veterano das Forças Armadas Revolucionárias da Colômbia (Farc, a guerrilha).
Divisões
Além de marcar um revés para o presidente Iván Duque e reafirmar os termos do acordo assinado entre os rebeldes e o governo de Juan Manuel Santos, o caso de Santrich deixou expostas divisões na liderança do partido. Enquanto tramitava na Justiça o questionamento à extradição do dirigente, outro ex-comandante, Iván Márquez, endereçou uma carta ;a toda a guerrilheirada; na qual critica como ;uma ingenuidade; a decisão de entregar as armas. Escolhido para ocupar uma das cadeiras reservadas à Farc no Congresso, Márquez, que chefiou a delegação rebelde nas negociações de paz travadas em Cuba, recusou-se a tomar posse e retirou-se de uma das áreas de segurança reservadas aos ex-combatentes ; desde então seu paradeiro é desconhecido.
Prontamente, o último comandante máximo da guerrilha e ex-candidato presidencial, Timoleón Jiménez, conhecido como Timochenko, respondeu acusando Márquez de ;abandonar a responsabilidade (parlamentar) delegada pelo partido;. Como Lozada e outros ex-comandantes que seguem ;dando a cara com o risco da vida;, Timochenko cobra do dissidente uma decisão sobre manter-se ou não nos marcos do acordo de paz. No último domingo, Santrich, cuja prisão em 2018 foi uma das razões alegadas por Márquez para retirar-se, tomou o seu partido e criticou a carta de Timochenko como ;um mau serviço à unidade do partido;.
"Acato as decisões tomadas pela Corte Constitucional, como colombiano e defensor da legalidade;
Iván Duque, presidente da Colômbia
Para saber mais
Geração
fraturada
; Silvio Queiroz
Além da faixa etária comum, os três entre os 50 e os 60 anos, os líderes da Farc envolvidos na polêmica sobre o processo de paz e a reinserção dos ex-combatentes compartilham a origem política na ;escola; que formou mais de uma geração para as fileiras da guerrilha. Foi na Juventude Comunisa (Juco) que Timoleón Jiménez (Timochenko), Iván Márquez e Jesús Santrich deram os primeiros passos na militância universitária. Passsaram à luta armada na década de 1980, seguindo os passos de Alfonso Cano, que em 2008 assumiu o comando máximo, após a morte do lendário fundador Manuel Marulanda (Tirofijo), e foi sucedido por Timochenko após ser executado pelo Exército, em 2011.
Márquez, cujo nome de registro é Luciano Marín, e Santrich, batizado como Zeuxis Pausias Hernández, viveram uma experiência traumática que pode explicar a posição reticente assumida na questão do desarmamento. Ambos integraram a União Patriótica, partido formado pelas Farc em 1985, no âmbito de um cessar-fogo bilateral firmado com o presidente Belisario Betancur. Márquez chegou a ser eleito vereador e deputado. A UP praticamente deixou de existir em 1990, depois que esquadrões paramilitares asssassinaram mais de 3 mil de seus militantes, incluindo dois candidatos presidenciais e dezenas de legisladores.
Os dois foram al monte ; expressão do jargão colombiano para a incorporação à guerrilha ; por essa altura, assumindo os nomes de guerra pelos quais se tornariam conhecidos. Jesús Santrich era um companheiro de Hernández na Juco, cujo assassinato selou a opção pelas armas. Rodrigo Londoño, a essa altura, já era o guerrilheiro Timoleón Jiménez.