Mas quem toma
conta da lojinha?
Na viagem que fez à China, o vice-presidente Hamilton Mourão contribuiu para atiçar a curiosidade dos parceiros e interlocutores do país em torno dos rumos de fundo e de longo prazo para a política externa. Uma vez mais, como em seus pronunciamentos sobre temas como a crise na Venezuela e as relações com os Estados Unidos, o general deixou entrever diferenças discretas, mas significativas, com as visões expressas pelo chanceler Ernesto Araújo ; de quem se esperaria ouvir, em condições normais, as definições da diplomacia brasileira.Mourão conduziu, ao lado do homólogo chinês, Wang Qishan, os trabalhos da quinta reunião da Comissão Sino-Brasileira de Alto Nivel de Concertação e Cooperação (Cosban). O mecanismo bilateral, instituído em 2004, no marco do aprofundamento das relações políticas e econômicas, é visto como peça-chave para o diálogo entre os governos de Pequim e Brasília, em especial desde que foi firmada a parceria estratégica global, em 2012.
Por fora do calendário formal, porém, o principal parceiro comercial do país aguarda a visita do presidente Jair Bolsonaro, prevista para o segundo semestre ; possivelmente, em outubro. Entre outros temas, como o compromisso do novo governo brasileiro com a articulação do Brics, o regime comunista mais capitalista do mundo busca uma colocação mais clara sobre o papel que o Brasil reservará, nos próximos anos, para a articulação entre as potências chamadas emergentes no esforço de imprimir seu traço no esboço da nova ordem mundial.
Entre uma e outra das reuniões que manteve em Pequim, inclusive com o presidente Xi Jinping, Mourão permitiu-se comentários sobre a estratégia de inserção do país no cenário global e na divisão internacional do trabalho. Questionou as trocas na base atual, em que exportamos bens primários e importamos produtos industrializados. E resumiu a avaliação na sentença de que não podemos continuar sendo, eternamente, ;a lojinha; onde o império renascente apenas ;faz compras;.
Mais uma vez, a intervenção do vice de Bolsonaro reforçou, para os emissários estrangeiros em Brasília, a impressão de que há muito mais que uma dúzia de pistas de rodagem entre o Planalto e o Itamaraty. A definição do general remete, tomadas as diferenças de enredo e contexto, ao arremate de antiga e conhecida piada na qual o comerciante no leito de morte confirma a presença de cada um dos parentes próximos ao redor. Em seguida, pergunta: ;Mas quem está tomando conta da lojinha?;
Ideologia ou negócios
A temporada de realinhamento externo do governo Bolsonaro inspira questionamentos entre importantes parceiros europeus sobre um dos motes escolhidos para emoldurar a diplomacia brasileira no período pós-Lula. Já desde a passagem dos tucanos paulistas José Serra e Aloysio Nunes pelo Itamaraty, no governo-tampão de Michel Temer, o lema era ;desideologizar;. No discurso de posse, em janeiro, entre citações tão diversas quanto as de Raul Seixas, o chanceler Ernesto Araújo voltou ao tema para reafirmar a determinação de colocar acima de tudo ;os interesses nacionais;.
O roteiro da recente visita do ministro à Europa, porém, levou alguns sócios de peso do país a colocar em dúvida as afirmações de pragmatismo. Não passou despercebida a afinidade de ideias entre os governos dos dois destinos principais, Hungria e Itália, ambos afinados com a nova onda de direita populista e ultranacionalista que varre o continente. Se o capital italiano tem presença secular na economia brasileira, os representantes de outros países europeus com longo histórico de relações econômicas estranham a deferência prestada a Viktor Orban, um dos arautos das políticas refratárias ao globalismo ; um dos alvos prediletos do ;guru; Olavo de Carvalho, objeto de admiração do presidente e do ministro.
Novo Velho Mundo
A eleição do Parlamento Europeu, por sinal, estampou para o mundo uma Europa em profunda recomposição político-partidária. Entre os resultados de maior impacto simbólico, o Reino Unido, com suas instituições milenares ; Constituição, parlamento e império da lei ;, assistiu à pulverização dos dois partidos que dominam há séculos a política local. Os conservadores, da premiê Theresa May, não chegaram aos dois dígitos e terminaram em quinto lugar, atrás até dos ecologistas. O trabalhismo saiu-se ligeiramente melhor, com magros 14%, o suficiente para superar os verdes por dois pontos. Na Alemanha, as urnas indicaram igualmente a ascensão dos ambientalistas, enquanto a centenária social-democracia, herdeira direta de Karl Marx, se agarrava ao patamar de 15%. A democracia cristã, pela primeira vez abaixo da linha dos 30%, vê com apreensão a anunciada despedida da chanceler Angela Merkel.
A desconstrução dos partidos dominantes do pós-guerra em dois dos países de maior estabilidade política no Velho Mundo parece seguir os passos de potências como França e Itália, onde as legendas tradicionais sucumbem a formações eleitorais que se comportam como ;marcas fantasia;, trocando de nome segundo as oscilações do ;mercado; dos votos.