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China despreza massacre

Jornal oficial em versão inglesa Global Times avalia que matança na Praça da Paz Celestial, há exatos 30 anos, "imunizou o país" contra distúrbios e se tornou "um fato histórico esquecido". Sobrevivente fala em ação premeditada do regime

Correio Braziliense
Correio Braziliense
postado em 04/06/2019 04:25
Policiais patrulham a Praça Tiananmen, diante do Grande Portão que permite acessar a Cidade Proibida: vigilância rígida para coibir manifestações




Três décadas depois, a violenta repressão aos protestos na Praça Tiananmen, no coração de Pequim, ;imunizou a China; contra a agitação política. Em um raro editorial sobre o assunto, considerado tabu no país, o jornal oficial Global Times avalizou ;o incidente; de 4 de junho de 1989, além de considerar que a matança de estudantes naquela madrugada ;se tornou um fato histórico esquecido;. O diário, publicado em língua inglesa e alinhado ao Partido Comunista da China (PCC), assegurou que a repressão permitiu à China se transformar na segunda economia mundial. ;Ao vacinar a sociedade chinesa, o incidente de Tiananmen aumentou enormemente a imunidade da China contra qualquer problema político futuro;, afirmou. Em plena guerra comercial entre Washington e Pequim, o secretário de Estado norte-americano, Mike Pompeo, condenou o PCC pelos abusos de direitos humanos e pela intolerância à dissidência.

;Ao longo das décadas que se seguiram, os Estados Unidos esperavam que a integração da China no sistema internacional levaria a uma sociedade tolerante e mais aberta. Essas esperanças foram frustradas;, declarou o chefe da diplomacia dos EUA. Pompeo denunciou ;uma nova onda de abusos;, como os campos de detenção dos uigures e de outros grupos minoritários muçulmanos na província de Xinjiang, comparados a campos de concentração.

Historiador especialista em China moderna e professor de história da Universidade da Califórnia, em Irvine, Jeff Wasserstrom explicou ao Correio que o massacre foi perpetrado para tentar impor medo à população e preveni-la de tomar as ruas em grandes números, como ocorreu não apenas em Pequim, mas em todo o país, em 1989. ;A ciência de que o governo utilizou de força letal contra manifestantes desarmados certamente levou alguns chineses a perderem a fé no PCC e a ansiar uma mudança no sistema político. Outros, no entanto, tiveram pouca noção direta sobre a tranquilidade dos protestos e sobre a brutalidade das matanças;, acrescentou.

Aviso
À época dos protestos em Tiananmen, o assistente social Chan Ching Wa Jonathan, então com 24 anos, era um dos delegados da Federação de Estudantes de Hong Kong e tinha viajado a Pequim para oferecer apoio ao movimento pró-democracia. Sua intenção era retornar a Hong Kong no dia 5 (leia o Depoimento). ;O massacre de Tiananmen serviu como um severo aviso a todos aqueles que aspiravam por mudanças democráticas ou mesmo por reformas na estrutura política e na governança da China: o PCC está disposto a matar e a silenciar todos aqueles que tiverem a menor dúvida sobre o poder absoluto e a autoridade dele;, disse ao Correio. Ele acredita que a matança de 1989 representou uma clara e flagrante inversão da relativa abertura vivenciada pelo regime comunista chinês nos anos anteriores.

O sobrevivente de Tiananmen não tem dúvidas de que o massacre foi premeditado desde o início. Segundo Chan Ching, a ordem para a entrada do Exército Popular de Libertação para limpar a praça à força ficou evidenciada na primeira tentativa frustrada, três semanas antes de 4 de junho, entre 19 e 21 de maio. ;Eles falharam na primeira vez devido a uma combinação de reações rebeldes de chefes do Exército com a falta de coordenação nas operações e um briefing ineficaz. A prova final de que não foi uma ação malcalculada estava no discurso de Deng Xiaoping. Em 9 de junho, ele visitou os chefes do Exército envolvidos no massacre e transmitiu a seguinte mensagem: ;Esse evento é antecipado e não seria descarrilado por nossa própria vontade. É melhor que venha agora e não depois. Eles (estudantes) desejam um fim para este país e para este partido. Eles querem democracia, uma república de democracia ao estilo ocidental;. A mensagem de Deng Xiaoping era clara para todos aqueles que se importavam em ouvir: os estudantes aspiram pela democracia; o Partido os esmagou, fim da história;, assegurou Chan Ching.


"Ao vacinar a sociedade chinesa, o incidente de Tiananmen aumentou enormemente a imunidade da
China contra qualquer problema político futuro;

Editorial do jornal oficial chinês Global Times, alinhado ao Partido Comunista da China



Eu acho...

;Logo depois do massacre de 4 de junho, em vez de tentar sufocar todos os debates sobre os eventos em Pequim, o governo encorajou a discussão, mas tentou impor uma compreensão muito particular sobre os eventos, ao alegar que houve um terrível motim, reprimido de forma controlada. Para apoiar tal visão, a TV estatal divulgou imagens do homem confrontando tanques, acusando a mídia ocidental de mentir sobre a brutalidade dos soldados, pois o ativista não foi atropelado.;


Jeff Wasserstrom, especialista em China e professor de história da Universidade da Califórnia, em Irvine


Depoimento

;Era uma cena do inferno;

;Eu estive em Tiananmen das 21h de 3 de junho às 4h30 de 4 de junho de 1989. Às 21h, nós partimos para o Museu Nacional da China, no lado oriental da praça. De braços dados, nos juntamos a 50 estudantes e trabalhadores, esperando nervosamente enquanto os soldados se aglomeravam nos degraus do prédio. Cantamos A Internacional, hino dos partidos socialistas e de esquerda.

Era quase uma cena surreal, especialmente a visão de um garoto lendo um livro à luz dos semáforos. ;Não se preocupem, eles não nos machucarão. Nós temos de permanecer calmos. Quem atiraria em nós?;, perguntou o jovem. Então, ouvimos disparos e a voz trêmula de um homem no alto falante: ;Estou segurando a camisa manchada com o sangue de meu colega. Estão começando a nos matar. O que vamos fazer agora?;.

Os feridos e mortos apareciam com frequência maior, eram carregados até um posto de atendimento improvisado pelo Hospital da Faculdade de Medicina da Universidade de Pequim. Às 23h30, escutamos um grito. Um jovem corria atrás de uma ambulância. ;Meu irmão, meu irmão!’, clamava. ;Eles mataram o meu irmão!’, disse, desmaiando nos braços de minha colega Liane Lee. Pouco depois, ele despertou e tornou a perseguir a ambulância. Lee desvaneceu. Depois que ela recobrou a consciência, vimos o menino novamente. Estava sendo carregado para a praça, sem vida.

Eu me juntei a outros estudantes de Pequim para erguer uma barricada improvisada. Ao caminhar de modo proposital até uma linha de soldados, fui rapidamente cercado por militares, que me golpearam com bastões. Às 4h15, uma ambulância se aproximou e uma médica nos empurrou para dentro, dizendo: ;Por favor, entre. Você precisa deixar a praça em segurança, voltar a Hong Kong e revelar ao mundo o que o governo fez;. Chegamos a um hospital na Rua Chongwenmennei. Testemunhamos um fluxo interminável de estudantes e de civis feridos à bala, muitos mortos. Era uma cena do inferno. Ficamos no hospital e demos dinheiro aos menos feridos, para que pudessem tentar escapar da capital. Deixamos o local às 17h e vimos a carnificina nas ruas de Pequim.;


Chan Ching Wa Jonathan, 54 anos, assistente social. Era um dos delegados da Federação de Estudantes de Hong Kong. Viajou a Pequim em 26 de maio

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