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Amar não é mais crime

Juízes da Alta Corte de Gaborone, capital de Botsuana, derrubam cláusulas do Código Penal e legalizam a homossexualidade. Ativistas comemoram avanço e esperam que outras nações do continente sigam o exemplo. Preconceito ainda persegue gays em vários países

postado em 12/06/2019 04:16
A artista transgênero Kat Kai Kol-Kes abre a bandeira com as cores do arco-íris, dentro do tribunal: da expectativa às lágrimas de felicidade e alívio



Estado não pode ser o ;xerife; no quarto das pessoas, e uma sociedade democrática é aquela que abraça a tolerância, a diversidade e a mente aberta. Quando Michael Leburu, juiz da Alta Corte de Gaborone, capital de Botsuana, usou esses argumentos e proferiu a decisão de invalidar provisões do Código Penal datado de 1965, o país do centro-sul da África fez história. A máxima instância do Judiciário descriminalizou a homossexualidade, por entender que a probição era resquício de uma legislação da ;era vitoriana;, de 1837 a 1901.

O artigo 164 do Código Penal determinava que ;qualquer pessoa que tentar cometer ofensas não naturais (relação carnal com qualquer pessoa contra a ordem da natureza) será culpada de um crime e passível de aprisionamento por um período não superior a cinco anos;. Por sua vez, o artigo subsequente estipulava que a simples tentativa de ;cometer ofensas naturais; resultaria em cinco anos de detenção. Com a revogação das duas cláusulas, ativistas LGBT esperam que outras nações africadas sigam o exemplo.

Na sala de audiências da Alta Corte, a artista transgênero Katlego Kolanyane-Kesupile, 31 anos, segurou e estendeu a bandeira arco-íris sobre as costas, no momento em que se preparava para escutar os magistrados. ;Nós lentamente começamos a coletar dicas do juiz Leburu de que a decisão seria a nosso favor, mas tivemos de ouvir suas razões. Eu estou muito orgulhosa dos juízes pelo caminho como eles estruturaram sua decisão;, contou ao Correio, por e-mail, Katlego, também conhecida como Kat Kai Kol-Kes. ;Também fiquei feliz por terem levado em conta argumentos sociais, culturais, morais e jurídicos. Este é um lembrete de que creem em um sistema legal vivo e em um julgamento justo.;

;Marco histórico;
Caine Youngman, ativista gay e gerente de Política e Advocacia Jurídica da Legabibo (a principal ONG em defesa das pessoas LGBT em Botsuana), classificou de ;marco histórico; a derrubada das cláusulas do Código Penal. ;Poucas nações africanas aceitam a homossexualidade. Apesar de cada país do continente ter uma legislação específica, creio que a decisão da Alta Corte fornecerá esperença e evidência a outros Estados africanos para que se inspirem no caso. Esta é uma vitória para a comunidade LGBT em todo o continente;, comemorou, em entrevista à reportagem.

Também ativista gay de Botsuana, Brilliant Kodie, 23 anos, celebrou o fato de a Alta Corte colocar as vidas dos cidadãos antes de qualquer coisa. ;No mês passado, houve a suspensão da proibição da matança de elefantes, que arruinavam plantações e ceifavam as vidas das pessoas. O Estado provou, com isso, se importar com os cidadãos. Agora, com essa decisão, o governo mostra que se interessa por nossa saúde, por nossa mentalidade e por nossas vidas. Antes de qualquer coisa, somos vistos como pessoas;, disse ao Correio. Kodie explica que, em países como Zâmbia e Zimbábue, a discriminação contra os homossexuais é tão intensa que alguns são brutalmente atacados. Ao contrário, em nações liberais, como a África do Sul e a Namíbia, os ativistas LGBT vivem bem;, acrescentou o também morador de Gaborone.

Kodie relatou que, assim que entrou na sala de audiências da Alta Corte, não sabia o que esperar. ;Enquanto eu me movia pelo ambiente e me sentava em silêncio, podia ver a ansiedade nos rostos das pessoas. Quando o resultado foi anunciado, todos ficamos em choques e felizes. Os presentes começaram a sorrir, a se abraçar e alguns até choraram;, contou. O juiz Michael Leburu entendeu que as cláusulas são ;relíquias da era vitoriana, não mais viáveis;. ;Elas oprimem uma minoria e não passam pelo teste da constitucionalidade;, declarou. ;A questão da moralidade privada não deve ser preocupação da lei. O Estado não pode ser xerife no quarto das pessoas. (;) Chegou a hora de a sexualidade entre pessoas do mesmo sexo ser descriminalizada.; O magistrado questionou o motivo pelo qual heterossexuais podem expressar sua sexualidade ;sem problemas;, enquanto o mesmo não vale para os homossexuais.

;A decisão da Corte é uma vitória tanto para o povo LGBT em Botsuana quanto para o povo LGBT e seus defensores em toda a África;, admitiu Neela Goshal, da organização Human Rights Watch (HRW). De acordo com ela, ;é um sinal estimulante para a dignidade humana, a vida privada e a igualdade;. No entanto, a maioria dos países da África Subsaariana trata a homossexualidade como ilegal. Em 24 de maio passado, o Supremo Tribunal do Quênia descartou a possibilidade de abolir leis que remontam à época colonial e que criminalizam a homossexualidade.

Vozes LGBTs


;A decisão da Alta Corte chega com muito atraso. Algumas províncias de Botsuana tinham avançado nas garantias de proteção às pessoas LGBTs. É um passo na direção correta, que fornece esperança para a comunidade LGBT de que a Justiça levará em consideração os direitos humanos de modo muito sério.;
Caine Youngman, ativista gay e gerente de Política e Advocacia Jurídica da ONG Legabibo, em Gaborone, capital de Botsuana


;É um passo positivo e um símbolo de que o sistema judicial do país almeja uma sociedade igualitária. Estou muito grato e feliz pela decisão da Alta Corte. Antes de ela acontecer, se você fosse pego em um ato homossexual, iria preso. O último caso ocorreu há muito tempo. No entanto, agora ninguém será penalizado
por ser gay.;
Brilliant Kodie, ativista gay, morador de Gaborone

;A questão da moralidade privada não deve ser preocupação da lei. O Estado não pode ser xerife no quarto das pessoas;
Michael Leburu, juiz da Suprema Corte de Botsuana

;Assim como outros cidadãos, essas pessoas (LGBTs) merecem ter os próprios direitos protegidos;
Mokgweetsi Masisi, presidente de Botsuana

33%

Percentual de lésbicas em Botsuana que já tentaram suicídio, em meio ao forte preconceito, segundo a ONG Legabibo


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