Brasil cristão e ocidental
Não tem escapado à apreciação dos interlocutores internacionais a inclinação da diplomacia brasileira, no governo Bolsonaro, por uma visão determinada sobre a ;cultura ocidental e cristã; e por um alinhamento que tem como parâmetro justamente esse embasamento. A colocação esteve presente no discurso de posse do ministro Ernesto Araújo, no Itamaraty. Permeou as colocações feitas desde então sobre diferentes temas da agenda internacional e voltou a pontificar, na semana que termina, em seminário conduzido na Fundação Alexandre Gusmão.
Em resumo, a fala do chanceler retomou colocações anteriores sobre o que o titular da pasta chama de ;combate ao globalismo;. Do ponto de vista estritamente político, a posição de Araújo ; de resto, referendada pelo presidente Jair Bolsonaro ; alinha o Brasil a um grupo de países e governos que rejeitam a concatenação das próprias políticas externas com soluções negociadas no âmbito da comunidade internacional. Em outras palavras: o país sinaliza a disposição de seguir uma diplomacia pela qual se associa a orientações unilaterais ; no caso, traçadas de Washington ; segundo as quais atende a um chamado de ordem religiosa e ideológica.
Como foi o caso da colocação do novo governo sobre diferentes temas, como o incêndio na Catedral de Notre Dame, em Paris, firmou-se uma posição segundo a qual o país toma posições com base em uma definição que corresponde às preferências do governo eleito, embora se sobreponha à definição do país como um Estado laico.
Israel na berlinda
Assim como ressaltam as referências do ministro à pertinência do país ao que ele próprio chama de ;coração da sociedade liberal;, emissários internacionais presentes em Brasília acompanham com alguma preocupação a transposição de postulados religiosos às linhas mestras da política externa do país. Preocupa os parceiros externos, especialmente, a percepção de que o governo brasileiro passa a balizar posições no crítico terreno do Oriente Médio com base nas relações mantidas, desde a campanha eleitoral, com um setor específico da comunidade evangélica. São as igrejas neopentecostais (protestantes) que mantêm relações especiais com o Estado judeu, inclusive com a organização regular de grupos de visitantes aos lugares sagrados cristãos em território israelense.
Já há alguns anos, diplomatas israelenses acreditados no Brasil identificam uma notável demanda por bandeiras de Israel por parte dessas igrejas ; que, invariavelmente, as ostentam em seus templos, lado a lado com a bandeira brasileira. A ideia de que a embaixada brasileira em Israel seja transferida para Jerusalém, contrariando o movimento da esmagadora maioria da comunidade internacional, que insiste em uma solução negociada para o status definitivo da Cidade Santa, obstrui os canais de diálogo diplomático construídos durante décadas com o mundo árabe.
Descontados os prejuízos de âmbito estritamente diplomático, entra no horizonte das observações a ideia de atrelar a diplomacia brasileira a Israel, na esteira das orientações implantadas pelos EUA sob o governo de Donald Trump. Na medida em que se confirme como orientação de governo, ela tende a alimentar obstáculos para o país nas relações políticas e mesmo comerciais com numerosos países árabes. Um mercado cativado à custa de várias viagens de alto nível e iniciativas bilaterais e multilaterais, nos governos Lula e Dilma, pode se perder para o Brasil à custa de uma escolha de ordem religiosa e ideológica.
Águas turvas
O alinhamento progressivo com Israel pega o Brasil justamente no momento em que as tensões se acirram com o Irã, país com o qual o governo Lula chegou a cultivar uma relação capaz de permitir à diplomacia brasileira algum grau de interferência ; suficiente para interferir na possível negociação de posições conciliáveis com a comunidade internacional. O acirramento da crise entre a República Islâmica e o governo de Washington coincide com o momento em que a política externa brasileira se aproxima acentuadamente à dos EUA, o que limita a capacidade do Itamaraty para repetir a atuação de 2009, quando o presidente Lula e o chanceler Celso Amorim chegaram a concertar, em associação com a Turquia, um acordo em torno do programa nuclear iraniano.
Rejeitada na época pelo governo de Barack Obama, que tinha Hillary Clinton como secretária de Estado, a fórmula negociada com Teerã terminou por ser a base do tratado concluído em 2015 entre o regime islâmico e um grupo de seis potências para conter as atividades atômicas de Teerã. O mesmo acordo que Donald Trump decidiu abandonar, unilateralmente, um ano atrás ; movimento que, hoje, coloca em xeque a estabilidade geopolítica na estratégica região do Golfo Pérsico.