Mundo

O lado frágil da tragédia

Morte de pai e filha de 2 anos durante travessia de rio na fronteira do México com os Estados Unidos comove o planeta e expõe a delicada situação das crianças em fuga de seus países. Unicef e Save the Children afirmam que menores são vulneráveis a vários perigos na jornada

postado em 28/06/2019 04:05
O salvadorenho Óscar Martínez e a filha, Valeria: afogamento ao cruzar o Rio Bravo


As duas imagens desta página se tornaram símbolos de um drama que comove e machuca, mas não a ponto de forçar políticas migratórias que contemplem os direitos humanos. Em 2 de setembro de 2015, o corpo de Alan Kurdi, 2 anos, foi fotografado na praia de Ali Hoca, em Bodrum (Turquia). Além do pequeno curdo-sírio; a mãe, Rehan; e o irmão, Galip, de 5 anos, morreram afogados. Quase quatro anos após Alan estampar os principais jornais e sites de notícias do planeta, a foto do salvadorenho Óscar Martínez, 25, e de Valeria, 2, recolocou a crise da imigração em pauta e expôs o lado mais frágil da tragédia. Pai e filha foram tragados pelas águas do Rio Bravo, quando faltavam pouco metros para atravessarem a fronteira do México com os EUA.

Assim como Óscar e Valeria, cerca de 50 milhões de crianças foram forçadas a abandonar suas casas, 30 milhões delas em áreas de conflito. Quando não encontram a morte, elas são submetidas a todo tipo de sofrimento. Na tentativa de responder à emergência humanitária na fronteira sul dos EUA, a Câmara dos Representantes aprovou ontem, por 305 a 102 votos, um projeto de lei para investir US$ 4,6 bilhões na região. O texto, que tinha sido apreciado pelo Senado, aguarda a sanção do presidente Donald Trump.

Porta-voz do Fundo das Nações Unidas para a Infância (Unicef), Christopher Tidey afirmou ao Correio que crianças forçadas a rotas de migração ilegal são especialmente vulneráveis à separação das famílias, à exploração, ao abuso e ao tráfico. ;Durante longas jornadas, elas também são expostas ao clima inclemente e podem ter acesso limitado à comida, à água potável e aos serviços sanitários, colocando o seu bem-estar em risco. Essas crianças podem experimentar eventos traumáticos e depender de apoio psicológico;, disse. ;Crianças são crianças antes de tudo, independentemente da sua situação migratória.; Segundo Tidey, o Unicef trabalha em países de origem para ajudar a aliviar os fatores que motivam a fuga das crianças, incluindo conflitos, pobreza e falta de oportunidade. O organismo da ONU também atua nas nações de trânsito e de destino, buscando assegurar que as crianças sejam protegidas.

María Josefinan Menéndez Carbajal ; CEO da organização não governamental Save the Children no México ; explicou à reportagem que, nos últimos anos, aumentou a presença de menores de 18 anos dentro dos fluxos migratórios que viajam dos países do Triângulo Norte para os Estados Unidos. ;Estima-se que um terço dos migrantes que entram pela fronteira do sul do México são meninas, meninos e adolescentes. Por sua idade e pelos motivos de seu deslocamento, deveriam contar com um melhor padrão de proteção aos direitos humanos, a fim de evitar tragédias como a que se abateu sobre Valeria e seu pai;, comentou. Carbajal disse que, entre janeiro e abril deste ano, mais 15 mil crianças foram apresentadas às autoridades migratórias mexicanas. Desse total, 10.897 foram repatriadas.

Estresse
;Abandonar seus lares, chegar a um novo país, não ter um lugar fixo e enfrentar processos administrativos migratórios causam um estresse tóxico que pode surtir implicações por toda a vida. Nosso pessoal em campo tem visto crianças desidratadas, doentes e, sobretudo, afetadas emocionalmente. A incerteza por não saber o que se passará e os contatos com autoridades mexicanas pouco sensíveis à infância aumentam o estresse dos pequenos e as chances de sofrerem trauma;, lamentou Carbajal. Para a executiva da Save the Children, as imagens dos corpos de Óscar e de Valeria são ;de partir o coração;. ;Ficamos indignados e nos fere profundamente o fato de que meninas, meninos e famílias precisarem fugir em busca de um futuro melhor e, no caminho, perderem a vida.;

Por telefone, Fatima Kurdi (leia Depoimento), tia de Alan Kurdi, admitiu que ninguém no mundo pode compreender o sofrimento daquelas pessoas obrigadas a deixar seus países. ;Todo cidadão deve sair da zona de conforto e se tornar a voz para essas pessoas que não têm voz, ser o agente de mudanças. As imagens de meu sobrinho, morto na praia, e de pai e filha afogados no México são similares. Nos dois casos, eram pessoas que buscavam esperança. Nós nada fazemos por elas;, desabafou, durante uma entrevista emotiva. Fatima reconhece que a foto do sobrinho comoveu políticos de vários países. Ela cita que, em três meses, o Canadá acolheu 25 mil refugiados, enquanto a Alemanha abriu suas fronteiras. ;Todos se esquecem rapidamente e se voltam para o silêncio. É assim que o mundo funciona.;


Eu acho...

;Eu espero que as pessoas que verem essas fotos entendam que as crianças e as famílias que empreendem essas jornadas não deixam suas casas e comunidades porque desejam, mas porque sentem que não têm outra opção. Apesar dos perigos da jornada migratória, elas são obrigadas a fugir por causa da ameaça da violência ou da extrema pobreza. Essa tragédia deveria ser um alerta ; muito mais deve ser feito para manter seguras as crianças e famílias em trânsito e ao alcançar seus destinos.;


Christopher Tidey, porta-voz do Fundo das Nações Unidas para a Infância (Unicef)


Depoimento

;Eu não pude dormir;

;Nos últimos quatro anos, desde a tragédia que levou o meu sobrinho Alan Kurdi, tenho visto milhares de imagens tristes e horríveis de crianças inocentes. Essa imagem do pai e da filha mortos quebrou meu coração, pois trouxe à tona as memórias de minha família. Eu não pude dormir durante a noite. A forma como essa menina estava acomodada sob a camiseta do pai. A forma como ela abraçava o pai. Eu estava me perguntando sobre o que esse pai amoroso falou para a filha. Provavelmente, foi algo como ;Tudo vai ficar bem;, ;Segure-se em mim, meu amor; (choro) ou ;Nós conseguiremos, há esperança no outro lado;. É muito triste.

Eu espero que as pessoas de todas as partes do mundo continuem a olhar essa imagem, pois essa é a única forma de movê-las para a ação. Nós precisamos de um despertar para ajudarmos as pessoas em sofrimento. Quantas imagens como essa as pessoas precisam ver para agir? Crianças inocentes morrem diante de nossos olhos e não estamos fazendo o suficiente. Não posso descrever o quão profundamente fiquei tocada com essa imagem.;


Fatima Kurdi, tia do garoto curdo-sírio Alan Kurdi, fotografado morto em uma praia da Turquia, em 2 de setembro de 2015

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