postado em 30/06/2019 04:21
A sura 103, versículos 2 e 3 do Corão, o livro sagrado do islamismo, afirma: ;Em verdade, o homem está em perda, exceto aqueles que têm fé e fazem boas obras, e se congregam na união mútua da verdade, da paciência e da constância;. Um número cada vez maior de árabes têm voltado as costas para a crença e a religião, e abandonado a confiança nos líderes religiosos e nos partidos islamitas. É o que revela uma sondagem (veja arte) publicada pela emissora BBC News Arabic em parceria com o Arab Barometer, um projeto mantido pela Universidade de Princeton, em Nova Jersey (Estados Unidos). Os pesquisadores consultaram 25 mil pessoas de 10 países árabes ; Argélia, Egito, Iêmen, Iraque, Jordânia, Líbano, Líbia, Marrocos, Sudão e Tunísia ; e dos Territórios Palestinos.
Diretor de Projeto do Arab Barometer, especialista da Universidade de Princeton e coautor da pesquisa, Michael Robbins explicou ao Correio que um número crescente de árabes, especialmente os mais jovens, têm afirmado que não são religiosos. ;Em 2013, 11% dos jovens disseram não ser religiosos. Hoje, essa proporção atinge quase um a cada cinco, ou 18%. Entre todas as faixas etárias da população, 13% admitem que não têm religião, atualmente;, comentou. ;Dado o pressuposto comum entre aqueles de fora do Oriente Médio e do norte da África (região conhecida como Mena) de que a religião domina todos os aspectos da vida, o fato de muitos não se identificarem como religiosos pode soar como surpresa.; No entanto, Robbins admitiu que essa tendência ocorre em outros cantos do planeta.
;Apesar disso, a vasta maioria de cidadãos da Mena continua a afirmar que a religião desempenha papel importante. Três quartos (77%) de todos os moradores dizem que rezam diariamente, enquanto metade dos muçulmanos lê ou escuta o Corão todos os dias. Enquanto isso, dois terços dos muçulmanos relatam frequentar a mesquita uma vez por semana;, lembra Robbins. De acordo com ele, ainda que os árabes jovens comecem a se distanciar da fé, a prática religiosa continua a ser muito importante para a maioria da população.
Por sua vez, Amaney Jamal ; professora de ciência política da Universidade de Princeton e coautora da pesquisa ; lembrou à reportagem que, desde 2013, os partidos islamitas perderam a confiança da população. ;O fenômeno foi mais acentuado no Iraque, onde houve queda de 30 pontos percentuais; seguido da Autoridade Palestina (-26%), Sudão (-25%), Jordânia (-21%), Marrocos (-20%) e Tunísia (-17%);, comentou. Entre os movimentos islamitas cujo prestígio começou a declinar após a Primavera Árabe estão a egípcia Irmandade Muçulmana, o palestino Hamas e o libanês Hezbollah.
Professor de estudos islâmicos da Universidade de Notre Dame, em Indiana (EUA), Ebrahim Moosa explicou que a aversão aos partidos islamitas varia de acordo com o contexto. ;Em um país como o Egito, a Irmandade Muçulmana, que foi banida, goza de muita simpatia, mas os cidadãos não podem declarar lealdade. Na Tunísia, as pessoas são mais céticas em relação a esses movimentos. A perda de confiança é mais evidente nesses dois países e no Sudão. Também vejo um grupo crescente de insatisfeitos no Irã.;
Sem surpresa
Amir Hussain, professor de estudos teológicos da Universidade Loyola Marymount (em Los Angeles), disse não ter ficado supreeso com a conclusão de que os muçulmanos têm se afastado da religião. ;Vemos esse fenômeno ao redor do mundo. Os níveis de ateísmo no mundo árabe são menores do que na Europa, mas a ausência de religião no islã existe;, admitiu. Em relação ao distanciamento dos partidos islamitas, Hussain afirmou crer que as pessoas buscam o que é melhor para elas. ;Em um mundo de regimes árabes autoritários, esses movimentos fornecem uma alternativa. Em poucos casos, quando eles assumem o poder, os cidadãos passam a ter a seguinte preocupação: ;Os partidos servem a si próprios ou ajudam a população?;;.
A pesquisa do Arab Barometer indica mudanças de comportamento entre os árabes. Segundo Robbins, a sondagem constatou que os jovens entre 18 e 29 anos são quase duas vezes mais propensos a considerarem a homossexualidade aceitável, em comparação com os mais velhos (14% contra 8%). ;O resultado sugere que provavelmente houve mudanças ao longo do tempo e que, embora poucos digam que a homossexualidade é permissível, as atitudes começam a se modificar.;
A sondagem também lança luz sobre os papéis das mulheres. No geral, os cidadãos defendem que elas deveriam ter direitos iguais aos dos homens. ;As maiorias acham que a mulher poderia servir como presidente ou premiê de uma nação muçulmana, enquanto existe ampla crença de que elas deveriam ter direitos iguais no divórcio;, relatou. No entanto, os árabes estão menos convencidos de que as mulheres deveriam exercer papel igual ao dos homens na sociedade. A maior parte dos árabes defende que os maridos deveriam manter a palavra final nas decisões da família. Essa tendência é maior na Argélia (71%), no Iraque (70%) e no Egito (69%).
Três perguntas para Amaney Jamal, professora de ciência política na Universidade de Princetone coautora da pesquisa
Como a senhora vê a perda de confiança nos partidos islamitas desde a Primavera Árabe?
A confiança nos partidos islâmicos caiu dramaticamente no Oriente Médio e no norte da África desde 2013, oscilando de 35% para 16% durante esse período. Os árabes estão perdendo os partidos e os movimentos que assumem diretamente a bandeira do islã. O declínio foi encontrado entre todas as faixas demográficas, com uma relativamente baixa confiança em partidos islamistas entre todos os segmentos da sociedade. A perda de confiança é mais provavelmente ligada às mudanças que ocorrem na região. Os partidos islamitas que vieram ao poder no Egito e na Tunísia não tiveram amplo apoio das populações. No Egito, o governo liderado por Mohamed Morsi aprovou legislações sem a contribuição significativa de poderes mais seculares e propôs uma Constituição baseada mais fortemente na lei islâmica. A opinião pública rejeitou o foco estreito sobre os interesses da base religiosa e se voltou contra a Irmandade Muçulmana. Dada a importância regional do Egito, muitos temeram que movimentos similares não sustentassem suas preocupações básicas, as quais se concentram mais no bem-estar econômico e na boa governança do que no desejo de implementar uma lei islâmica.
De que modo o Estado Islâmico e a repressão exercida por alguns governos árabes aos islamitas influenciaram nesse fenômeno?
A ascensão do Estado Islâmico (EI) provavelmente teve um efeito dramático sobre o apoio dos partidos islamitas. Apesar do fato de que o EI representa uma interpretação extremista do islã, que partilha pouco em comum com ideologias de partidos islamitas tradicionais no Oriente Médio e no norte da África, a rejeição quase universal à facção por parte dos cidadãos árabes levou muitos a desconfiarem dos partidos que levantaram a bandeira do islã. A repressão de governos contra o movimento islamita provavelmente teve um efeito. O Egito baniu a Irmandade Muçulmana, enquanto países do Golfo Pérsico marginalizaram o movimento islamita. Essa campanha contribuiu para a perda da fé em partidos islamitas. (RC)