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Suposto envenenamento de opositor deve turbinar manifestações anti-Putin

Alexei Navalny, um dos mais ferrenhos opositores ao Kremlin, volta à prisão após suposto envenenamento. Médica particular fala ao Correio e descarta alergia. Human Rights Watch teme manifestações violentas no sábado, em caso de piora do quadro clínico

Rodrigo Craveiro
postado em 30/07/2019 06:00

Navalny, em foto tirada ainda no hospital: O enredo lembra os filmes de espionagem. Alexei Navalny, 43 anos, principal líder da oposição na Rússia, deixa a prisão e é levado às pressas para o hospital de número 64, em Moscou, no último domingo. ;À noite, acordei com o rosto ardendo e pinicando, assim como as orelhas e o pescoço. Senti como se tivessem esfregado o meu rosto com lã de vidro. Pensei que talvez tivesse sido envenenado;, relatou ele, na véspera, em seu blogue. Em entrevista ao Correio, Anastasy Vasilyeva ; médica particular de Navalny e oftalmologista ; admitiu a hipótese de envenenamento, apesar de reconhecer a dificuldade em obter a comprovação. ;É muito difícil provar que tenha sido uma substância química, pois o trajeto da penetração no organismo não está clara. Se foi por via exógena, descobriremos logo com a ajuda de uma amostra do cabelo e da camisa de Alexei. Se o veneno tiver sido colocado na comida ou na água, será bem difícil essa análise, mas tentaremos fazê-la;, comentou Vasilyeva, que disse ter percebido a atitude ;estranhamente nervosa; dos funcionários do hospital.

Os antecedentes envolvendo a Rússia corroboram a tese de intoxicação proposital. O Kremlin é suspeito de ter usado polônio (altamente radioativo), o agente neurotóxico Novichok e outras toxinas contra opositores. ;Trata-se claramente de um envenenamento, com uma substância química desconhecida;, declarou Olga Mikhailova em frente ao hospital onde Navalny foi internado. Mesmo sem ter se recuperado, o opositor foi encaminhado de volta à cadeia para cumprir o restante da pena de 30 dias de detenção ; em resposta à convocação dos protestos do último sábado contra a exclusão de candidaturas independentes para as eleições municipais de 8 de setembro. Nas manifestações, pelo menos 1.400 pessoas foram detidas pelas forças de segurança, o maior número de detenções em uma concentração pró-democracia dos últimos anos. ;Claramente, Alexei foi reenviado à prisão por ordens de cima;, disse à imprensa Vasilyeva.

Segundo Navalny, os primeiros sintomas surgiram em uma caminhada, depois do almoço do último sábado. Colegas de cela notaram o seu pescoço avermelhado e, uma hora depois, ele relatou ter sentido a testa e a pele ao redor dos olhos ;queimando;. Durante a madrugada, houve uma piora clínica. Pela manhã, Navalny recebeu injeções de suprastina e de prednisona, ainda no posto de saúde da penitenciária. ;Não informaram o diagnóstico à minha médica, nem à minha advogada. Eles (médicos) se comportaram como se escondessem algo de mim;, relatou Navalny em seu blogue. A versão oficial indica uma dermatite de contato, uma suposta reação alérgica (urticária) contestada por Vasilyeva. ;Nunca tive uma alergia. Não importa se a alimentos ou ao pólen;, acrescentou. Em 2017, a oftalmologista tinha tratado Navalny por outro incidente suspeito, uma queimadura no olho causada por um corante químico verde.

Riscos

Vice-diretora para Europa e Ásia Central da Human Rights Watch (HRW), Rachel Denber preferiu não comentar o suposto envenenamento. ;A razão pela qual a urticária e o angioedema (inchaço) no rosto de Navalny são notícias internacionais se deve aos casos não explicados de envenenamento de adversários do Kremlin. Mas, não estou na posição de dizer o que causou esse quadro;, afirmou à reportagem.

De acordo com ela, Navalny se tornou uma das figuras políticas mais proeminentes da oposição ao presidente russo, Vladimir Putin. ;Ele é largamente conhecido por suas campanhas anticorrupção e pelas publicações no YouTube, que atraem milhões de visualizações. As emissoras de TV russas quase não fornecem cobertura sobre ele, o que limita sua influência interna;, disse Denber. A ativista da HRW adverte que, caso o opositor fique gravemente doente na prisão, os protestos aprovados para o próximo sábado podem ganhar dimensão violenta.

Para Abbas Gallyamov, ex-redator dos discursos de Putin e analista político baseado em Moscou, explica que existe ódio pessoal entre o presidente e Navalny. ;Isso porque nenhum outro político ataca Putin de forma tão amarga;, lembrou ao Correio. A postura desafiadora de Navalny, da ala mais radical da oposição russa, torna um problema qualquer solução envolvendo o político. ;Prenda-o, e você o tornará um herói para seus seguidores. Ignore-o, e todos verão que é seguro criticar você;, disse Gallyamov. Ao ser questionado se o governo de Putin representa um risco para a democracia, o analista foi enfático: ;Não existe demcoracia na Rússia há muitos anos. Nada pode ameaçar o que já está morto;.

Assassinatos e complôs / Outros casos prováveis ou comprovados de envenenamento de personalidades nos últimos 40 anos

Serguei Skripal


Em 2018, o ex-agente duplo russo e sua filha Yulia são encontrados inconscientes em um centro comercial em Salisbury (sul da Inglaterra) e hospitalizados em estado grave. Londres acusa Moscou de estar por trás do envenenamento com Novitchok, um poderoso agente neurotóxico de concepção soviética, em retaliação por sua colaboração com os serviços de inteligência britânicos. O Kremlin nega. Serguei Skripal e sua filha deixam o hospital nos meses seguintes.

Kim Jong-nam

Em 2017, no aeroporto de Kuala Lumpur, duas mulheres jogam uma substância no rosto do meio-irmão do líder norte-coreano Kim Jong-un. Ele morre ao ser transferido para o hospital. Vestígios de VX, agente neurotóxico classificado como uma arma de destruição em massa, são encontrados nele. A Coreia do Norte nega qualquer envolvimento.

Alexander Perepilichny

Em 2012, o empresário russo é encontrado morto em frente a sua propriedade em Surrey. Morte natural, segundo a polícia. Exames solicitados por uma companhia de seguros revelam que ele ingeriu
uma molécula associada ao gelsemium, planta tóxica da Ásia.


Alexander Litvinenko

Em novembro de 2006, o ex-espião russo Alexandre Litvinenko, que se tornou opositor ao presidente Vladimir Putin, morreu aos 43 anos em um hospital britânico, vítima de um envenenamento por polônio, sustância radioativa extremamente tóxica. Três semanas antes, esse desertor do serviço secreto tinha bebido chá com outro ex-agente russo, Andrei Lugovoi.

Yasser Arafat

Em 2004, o líder palestino morre aos 75 anos no hospital militar de Percy, perto de Paris. Rumores de envenenamento envolvendo Israel surgem imediatamente. Em 2012, uma investigação judicial é aberta na França após queixa apresentada por sua viúva pela descoberta de polônio em seus pertences pessoais.

Viktor Yushchenko

Em setembro de 2004, o ucraniano Viktor Yushchenko, candidato da oposição, herói da Revolução Laranja, fica profundamente doente durante a campanha presidencial na qual concorria com o candidato favorito da Rússia, Viktor Yanukovich. Médicos austríacos identificaram três meses após o ocorrido o envenenamento por dioxina. Yushchenko é eleito presidente em 2005.

Khaled Mechaal

Em setembro de 1997, em Amã, agentes do Mossad, serviço de inteligência israelense, tentam assassinar Khaled Mechaal, dirigente do movimento islâmico Hamas, ao injetarem veneno em seu pescoço. O palestino, em estado de coma, é salvo por causa da intervenção do rei Hussein da Jordânia, que exige que do governo israelense o antídoto em troca da libertação dos dois autores do atentado.

Georgi Markov

Em setembro de 1978, o escritor dissidente búlgaro Georgi Markov é espetado na coxa enquanto aguardava um ônibus em Londres, por um desconhecido que deixou cair seu guarda-chuva. Markov, queixando-se de febre alta, morre quatro dias depois. A autópsia revelou em sua perna a presença de uma cápsula do tamanho da cabeça de uma agulha contendo um veneno violento, a ricina.

Três perguntas para: Anastasy Vasilyeva, médica de Alexei Navalny

O que leva a senhora a pensar que Navalny possa ter sido envenenado?
Eu posso assumir que a causa da dermatite de contato, do angioedema (inchaço) pronunciado da área periorbital (ao redor dos olhos) e da intoxicação generalizada foi uma substância química desconhecida. Minha suposição se baseia no fato de que Alexei jamais teve uma alergia, e não usou nenhum novo perfume, nem produtos para cuidados pessoais. Também comeu as mesmas refeições que todos os homens que estavam com ele na prisão. Os principais sintomas que ele apresentou foram angioedema nas pálpebras, coceira, dor severa nos olhos, além de erupção generalizada em todo o rosto, no pescoço, nas mãos, nas costas e no peito.

De que maneira ele está reagindo a essa suspeita de intoxicação?
Alexei está emocionalmente completamente calmo. Estou certo de que essas provocação não o assustarão nem o derrubarão. Ele também acha que sua doença se deve a uma possível ação de um agente químico desconhecido.

Não existe possibilidade de uma reação alérgica?
É claro que não foi uma simples alergia. Alexei, a princípio, nunca teve reações alérgicas, e uma erupção na pele acompanhada de angioedema pronunciado não se parecem com alergia. Trata-se de um quadro de dano tóxico à pele e às mucosas.

Eu acho...

;O governo de Vladimir Putin persegue Alexei Navalny porque não deseja enfrentar uma competição política genuína de alguém que expõe a corrupção, que desafia o modo como o país é administrado e que tem o poder de ser eficiente. O Kremlin deseja conter o processo político, mesmo que isso signifique manipulação e repressão. É uma ameaça à democracia.;, Rachel Denber, vice-diretora para Europa e Ásia Central da Human Rights Watch (HRW).

;Em uma eventual morte de Navalny, prevejo uma nova onda de revolta popular. O regime parecerá totalmente imoral. O regime não é sábio. Então, nada pode ser descartado. Eles poderiam ter cometido esse erro (envenenamento de Navalny) também.;, Abbas Gallyamov, ex-redator dos discursos de Putin e analista político à pele e às mucosas.

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