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Decisão da Índia eleva risco de guerra

O premiê Narendra Modi celebra a "decisão histórica" de revogar a autonomia da região controlada pelos indianos e atribui a medida à luta contra o terrorismo. Especialistas temem novo conflito com o Paquistão e veem endurecimento de Nova Délhi

Correio Braziliense
Correio Braziliense
postado em 09/08/2019 04:06
Bloqueio montado pela polícia na cidade de Jammu, de 600 mil habitantes








O território equivale a 22 milhões de campos de futebol, faz divisa com a China, abriga população majoritariamente muçulmana e é uma das regiões mais militarizadas do planeta. Por causa dele, Índia e Paquistão travaram duas grandes guerras, em 1948-1949 e em 1965. Também por essa região, as duas potências nucleares enfrentam uma crise diplomática e revivem uma escalada de tensão com potencial para desencadear novo conflito. Depois de revogar o artigo 370 da Constituição de seu país, o qual concedia status especial e relativa autonomia à Caxemira administrada pela Índia, o primeiro-ministro indiano, Narendra Modi, fez um discurso à nação de 1,2 bilhão de habitantes e afirmou que a decisão busca libertar a região do terrorismo.

;Durante décadas, os artigos 370 e 35-A encorajaram o separatismo, o terrorismo, a corrupção e o nepotismo. Não havia benefícios para os cidadãos. Agora, com as bênçãos do povo, uma mudança positiva começou;, declarou Modi. ;Como nação, tomamos uma decisão histórica. Devido ao sistema do passado, o povo de Jammu e Caxemira e de Ladakh foram privados de muitos direitos, um grande obstáculo para o seu desenvolvimento. Isso acabou.;

Apesar do otimismo do premiê, moradores da Caxemira se ressentem do bloqueio imposto por Nova Délhi, enquanto especialistas temem uma terceira guerra e a comunidade internacional recomenda contenção. Em resposta à expulsão do embaixador da Índia em Islamabad, o Ministério indiano das Relações Exteriores advertiu que a Caxemira é um ;assunto interno; de Nova Délhi e classificou de ;alarmistas; as ações tomadas pelos vizinhos. ;A intenção por trás destas medidas (as ações unilaterais do Paquistão) é mostrar ao mundo uma imagem alarmante de nossas relações bilaterais;, afirma um comunicado.

;Vigilante;
O governo paquistanês descartou uma ação militar imediata contra a Índia. ;O Paquistão permanecerá vigilante. Nós colocaremos salvaguardas para a nossa segurança. Não seremos culpados por uma operação de bandeira falsa. Não estamos procurando a opção militar, mas olhando preferencialmente para opções políticas, diplomáticas e legais;, explicou o chanceler paquistanês, Shah Mehmood Qureshi.

Para Shruti Kapila, professora de história e política indiana da Universidade de Cambridge (Reino Unido), a manobra de Modi sinaliza uma grande mudança na relação da Índia com toda a região, não apenas no contexto doméstico. ;Trata-se de uma resposta estratégica mais muscular. As consequências disso serão a redefinição do papel da Índia na geopolítica, enquanto os EUA retiram as tropas do Afeganistão, encerrando a guerra global ao terror. Isso tem várias ramificações regionais. A China, por exemplo, tem grandes interesses na Índia, enquanto permance como aliado estratégico do Paquistão;, explicou ao Correio. ;No âmbito doméstico, a decisão centraliza ainda mais o poder nas mãos de Modi e testa a estrutura federal da política de diversidade indiana, à medida que se move rumo a uma maior centralização e uniformidade.; O Partido do Povo Indiano (BJP), liderado pelo primeiro-ministro e representante do ultranacionalismo hindu, tem se colocado contrário ao status especial da Caxemira desde 1950. Kapila acredita que ausência de oposição política possibilitou a revogação da autonomia.

Estrategista militar da Universidade do Punjab (em Lahore), o paquistanês Hasan-Askari Rizvi explicou que o artigo 370 previa que o premiê poderia fazer mudanças no status da Caxemira apenas sob recomendação da Assembleia Constituinte local. ;Não existe um parlamento na Caxemira, que está sob controle do premiê;, lembrou. Ele admite o receio de uma deterioração da crise e de novo conflito armado. ;A preocupação paquistanesa é de que Nova Délhi monte um falso atentado terrorista na Caxemira indiana e responsabilize Islamabad. Isso poderia desencadear uma ação militar em nome do combate ao terrorismo;, comentou. Em fevereiro passado, os dois países travaram rápidos combates que seguiram essa tônica: após um ataque extremista na Índia, aviões indianos bombardearam áreas do Paquistão; a Índia perdeu duas aeronaves e um piloto indiano foi capturado.

De acordo com Rizvi, ao abolir a autonomia da Caxemira indiana e ao integrá-la ao território nacional, reduzindo-a de Estado (província) para território da União, Modi levou à partilha da autonomia dos próprios compatriotas na região. Sob condição de usar nome fictício, Amit, morador da Jammu (Caxemira indiana), relatou ao Correio que a segurança na cidade foi reforçada, com restrições a movimentos em estradas e ao acesso às comunicações. ;Apesar de o governo indiano ter uma grande base de apoio em Jammu, as pessoas estão muito apreensivas ante o risco de um atentado. As redes de telefonia não estão disponíveis e todas as estradas foram bloqueadas com concertinas (arame farpado);, disse.


A análise dos dois lados

;A questão da Caxemira remonta à independência da Índia, em 1947. Sob a tutela britânica, a Índia tinha 561 ;Estados principescos;, que assinaram tratado de adesão à Índia ou ao Paquistão. A Caxemira tinha maioria muçulmana e rei hindu. Ela somente se uniu à Índia em outubro de 1947. Pouco depois, o Paquistão atacou a Caxemira. A região administrada pela Índia e pelo Paquistão se tornou dois territórios distintos. Desde então, tem sido uma das áreas mais militarizadas do mundo.;



Shruti Kapila, professora de história e política indiana da Universidade de Cambridge (Reino Unido)

;Com a revogação do artigo 370 da Constituição indiana, a Caxemira deixa de ser um Estado e se torna território da União. Uma vez que a Índia levantar o toque de recolher e o bloqueio impostos às maiores cidades da Caxemira, a revolta nas ruas, contra Nova Délhi, ressurgirá. A Índia alega que o Paquistão fomenta esse problema, do contrário a Caxemira seria um local estável e tranquilo. Não é verdade. Um grande número de pessoas da Caxemira indiana deseja ;liberdade; em relação a Nova Délhi.;


Hasan-Askari Rizvi, estrategista militar paquistanês da Universidade do Punjab (em Lahore)


A crise em detalhes


Entenda o anúncio da Índia, o impacto sobre a região e a reação do vizinho:

A decisão da Índia
Na segunda-feira, o Parlamento indiano aprovou resolução revogando o status especial da Caxemira. A ;Lei de Reorganização de Jammu e Caxemira; divide o Estado em dois territórios governados por Nova Délhi. Com a revogação do Artigo 370, o território indiano da Caxemira perde a autonomia relativa e passa a ser incorporado ao Estado. Até então, os cidadãos gozavam de privilégios em educação, empregos e posse de bens.

As Restrições impostas
pelo governo indiano

Corte de comunicações

Na noite de domingo, as comunicações via internet, celular ou rede fixa na Caxemira indiana foram cortadas.

Prisões
Três líderes políticos ; incluindo chefes do Executivo de Jammu e Caxemira, Mehbooba Mufti e Omar Abdullah ; foram colocados em prisão domiciliar. Pelo menos 300 pessoas, entre elas políticos, ativistas e professores, acabaram detidas.

Toque de recolher
A Índia impôs toque de recolher na região, a fim de coibir levante, e enviou milhares de soldados para as ruas. Viagens e reuniões foram vetadas.

A resposta do Paquistão

1. Rebaixamento das relações diplomáticas com a Índia
2. Suspensão com comércio bilateral com a Índia.
3. Revisão dos acordos bilaterais.
4. Apresentação do tema à ONU, inclusive ao Conselho de Segurança.

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