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Mergulho na incerteza

Matteo Salvini, ministro do Interior, apresenta moção de censura contra o premiê, Giuseppe Conte; exige eleições antecipadas "o quanto antes"; e lança o país em grave instabilidade política e econômica. Especialistas veem manobra para buscar o poder absoluto

Correio Braziliense
Correio Braziliense
postado em 10/08/2019 04:05
Matteo Salvini (o quarto, à direita) discursa em Mola Di Bari (sul): depois de implodir o governo, o ultradireitista se apresenta como candidato
Uma das mais graves crises políticas dos últimos tempos na Itália tem um responsável e, segundo especialistas, um motivo obscuro. O ministro do Interior, Matteo Salvini, mergulhou o país na incerteza ao implodir a coalizão do governo de extrema direita com o Movimento 5 Estrelas (M5S), do antissistema Luigi Di Maio, e exigir eleições antecipadas o quanto antes. Para os analistas, a jogada tem o objetivo de consolidar o poder absoluto de Salvini. No tabuleiro do poder em Roma, o xeque-mate foi dado ante divergências entre as lideranças políticas da Liga, o partido de Salvini, e o M5S.

Ontem, o ministro ultradireitista apresentou moção de censura contra o premiê, Giuseppe Conte, um passo rumo ao desmantelamento do Executivo. ;Demasiados ;nãos; prejudicam a Itália, que necessita voltar a crescer rapidamente. Quem perde tempo prejudica a nação e apenas pensa na cadeira de comando;, afirma nota da Liga. O primeiro-ministro não escondeu sua irritação com o agora ex-aliado. ;Salvini terá de explicar aos eleitores que acreditam na possibilidade de mudança as razões que o levaram a interromper brutalmente a coalizão de governo;, declarou Conte, ao assegurar que a Liga obteve praticamente tudo o que pediu até agora.

Em comunicado na quinta-feira, Salvini tinha justificado sua decisão: ;Não há mais maioria do governo; (;) demos a palavra aos eleitores;. Na noite do mesm dia, durante comício em Pescara, praticamente posicionou-se como candidato. ;Nos dizem que não podemos reduzir os impostos. Nós vamos mostrar que sim, se nos derem a força para fazer isso;, disse aos simpatizantes.

Novas eleições são consideradas certas. Não se sabe, no entanto, quando ocorrerão e nem com qual governo à frente da Itália. ;É uma brincadeira que não tem graça nenhuma. Os italianos já estão sentindo as consequências;, com alta das taxas de juros da dívida italiana, escreveu ontem o colunista Claudio Tito no jornal La Repubblica, de tendência progressista.

Contradições
Professor de ciência política Universidade de Pavia (em Pavia, a 560km de Roma), Giovanni Cordini explicou ao Correio que Salvini puxou o plugue da coalizão por duas razões prioritárias: o surgimento de contradições dentro do governo e a esperança de vencer as eleições. ;Os dois parceiros da coalizão, Liga e M5S, têm opiniões opostas e abordagens políticas destoantes sobre vários temas importantes, como a política fiscal e econômica, a infra-estrutura, a questão europeia, a autonomia regional e a Justiça;, comentou. ;O acordo entre os dois partidos não é mais viável. A crise política é séria e não vejo possibilidade de soluções estáveis sem votação;, acrescentou.

Angelo D;Orsi, historiador da Universidade de Torino, descarta qualquer chance de ressurgimento da coalizão. ;As contradições com os aliados do M5S se tornara, incontroláveis. A sobrevivência desse pacto era complicada e piorou gradualmente nos últimos meses. A coalizão enfrentava um risco diário de ruptura;, disse à reportagem. Para ele, Salvini se encontra em dificuldades frente a lei orçamentária, que deveria ser aprovado antes do fim do ano. ;O documento revelaria o fracasso da política econômica do governo. Além disso, Salvini sente que o momento é favorável a ele, no sentido de obter ampla e, talvez, absoluta maioria;, afirmou D;Orsi. ;Embora a Itália seja o ;país de Polichinelo; (ou ;Pulcinella;, personagem burlesco da comédia italiana), acredito que enfrentamos grave crise política. Salvini sairá dela arruinado ou vitorioso. Não existe outra opção possível.;

Secessionismo
Com o slogan nacionalista ;os italianos primeiro;, similar aos de Jair Bolsonaro e de Donald Trump, Salvini é um secessionista que cortejou o soberanismo, dinamitou a direita e agora espera governar sozinho. O milanês de 46 anos é crítico dos imigrantes, do islã, do euro e do casamento entre homossexuais. ;Ouvi de tudo. Que sou criminoso, um racista, um fascista. Eu sou um comunista à antiga, conheço mais fábricas do que essa gente (de esquerda) que só se junta com banqueiros;, costuma se gabar o homem mais forte do governo, que se apresenta como defensor dos valores cristãos.


Palavras de especialistas

Solução
nas urnas


;A atual crise política é séria. Não vejo possibilidade de soluções estáveis se que haja nova eleição. Todas as decisões sobre o momento desta crise, a nível constitucional, são competências distintas do presidente da República, dos blocos de parlamentares e das assembleias políticas. Para o meu país, a crise envolve riscos sobre vários aspectos: algumas questões importantes de política externa (como a indicação de um comissário europeu, por exemplo), a aprovação da lei orçamentária, a situação financeira da Itália e a dívida pública.;



Giovanni Cordini, professor de ciência política da Universidade de Pavia

Desafio
à nação

;Não se trata do desafio da Liga à Itália, mas de Matteo Salvini, que aspira ao poder absoluto. Seu pedido por ;plenos poderes;, que se refere diretamente a Benito Mussolini, pode ser bem sucedido agora, em caráter imediato. Cada dia de espera, no entanto, deve reduzir suas chances de sucesso. Agora, o presidente da República tem a possibilidade de tentar formar um governo entre uma parte do Movimento 5 Estrelas (M5S), o Partido Democrático (PD) e representantes de várias forças políticas ou ir às eleições. Espero que ele escolha a primeira opção.;



Angelo D;Orsi, historiador da Universidade de Torino

Próximos passos

Os prováveis cenários após o anúncio de Salvini de romper com o governo

Moção de censura
Em pleno recesso de verão, o Senado e a Câmara dos Deputados devem reabrir as portas. Caberá aos presidentes de ambas as câmaras definir um calendário. O Senado deverá debater a moção de censura apresentada por Matteo Salvini, ministro do Interior, contra o premiê Giuseppe Conte, figura próxima ao Movimento 5 Estrelas (M5S).

Votação e ruptura
A ruptura da coalizão entre a Liga e o M5E significa a queda de um governo que está no poder há 14 anos. A votação da moção de censura pode ocorrer em 20 de agosto, oficializando o fim da aliança. Segundo as normas, a moção é votada primeiro no Senado e, depois, na Câmara dos Deputados. Se a primeira Casa aprovar a censura, o voto na outra é desnecessário.

Renúncia
Neste cenário, Conte deve entregar a renúncia ao presidente da República, Sergio Mattarella, que lhe pedirá para permanecer à frente do Executivo por mais alguns dias. É o tempo necessário para realizar as tradicionais consultas.

Consultas
Mattarella, que também interrompeu as férias, receberá os líderes dos partidos políticos representados no Parlamento e ex-presidentes para uma rodada de consultas rápidas.

Dissolução do Parlamento
Se constatar, como é provável, que não há maioria parlamentar em torno de um líder político, Mattarella decidirá dissolver o Parlamento, em torno de 26 de agosto, e convocará eleições.

Eleições
A Constituição exige a organização de eleições em um prazo máximo de 70 dias, necessários para os preparativos logísticos. Até o dia das eleições, Conte permanece no cargo de premiê.

Outras formas de governar
Ainda conforme a Constituição, é possível considerar outras formas de governar: entre elas, um chefe de governo designado de forma provisória, ou um tecnocrata para apresentar em outubro a Lei de Orçamentos para 2020.


Papa Francisco compara
nacionalismo a Hitler



O papa Francisco criticou o nacionalismo por conduzir a guerras e acredita que o populismo não reflete a cultura popular, em entrevista publicada no jornal La Stampa, em meio à crise política deflagrada na Itália pela extrema direita de Matteo Salvini. ;O nacionalismo é uma atitude de isolamento. Estou preocupado, porque ouvimos discursos que lembram os de Hitler em 1934. ;Primeiro nós. Nós... nós...;: estes são pensamentos aterrorizantes;, afirmou o pontífice. ;Um país deve ser soberano, mas não fechado. A soberania deve ser defendida, mas as relações com outros países e com a Comunidade Europeia também devem ser protegidas e promovidas. O nacionalismo é um exagero que sempre acaba mal: leva a guerras.; Sobre o populismo, o pontífice, que vivenciou os anos de Domingo Perón em seu país, explicou que essa prática também ;fecha as nações;.

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