postado em 13/08/2019 04:05
Depois do choque, a tentativa de explicar o fracasso nas urnas sem se desvincular da realidade e a adoção da retórica do medo. ;Isso é apenas uma mostra do que pode ocorrer. Não podemos retornar ao passado, pois o mundo vê isso como o fim da Argentina. (;) Isso é pelo passado, há muita gente que não deixa seu dinheiro neste país, que vai embora deste país. O que pode acontecer é horrível;, insistiu o presidente argentino, Mauricio Macri, ao responsabilizar o kirchnerismo pela reação desastrosa do mercado ao resultado da Primárias Abertas, Simultâneas e Obrigatórias (PASO) do último domingo. ;Temos de entender que o problema maior é que a alternativa kirchnerista não goza de credibilidade nem de confiança no mundo. Isso é algo que o kirchnerismo deveria fazer uma autocrítica e resolvê-lo. Construir a credibilidade que não tem. Há um problema grave entre o kirchnerismo e o mundo;, acrescentou.
Macri descartou fazer alterações e declarou que as eleições de 27 de outubro serão uma ;boa oportunidade; para demonstrar que a mudança segue. A magnitude do golpe imposto pelo peronismo não foi prevista pelos analistas políticos. Com 99,37% das urnas apuradas, a chapa Alberto Fernández-Cristina Fernández de Kirchner (Frente de Todos) obteve 47,66% dos votos contra 32,08% para a aliança Mauricio Macri-Miguel Ángel Pichetto (Juntos por el Cambio), durante as PASO.
Especialistas consultados pelo Correio explicam que a reação negativa do mercado e a diferença de 15 pontos percentuais entre as duas principais coligações praticamente minam as chances de reeleição e colocam em xeque a governabilidade de Macri. ;Parece impossível que Macri se recupere e consiga uma vitória nas eleições de 27 de outubro. Ele está arruinado e não conseguirá controlar a economia. Creio que buscará uma coalizão e o apoio de outros setores, como ocorreu com o ex-presidente Fernando de la Rúa (1999-2001). Mas os políticos não o acompanharão, pois não desejarão fazer parte do fracasso da coalizão;, disse Raúl Aragón, consultor político e diretor do Programa de Estudos de Opinião Pública na Universidad Nacional de La Matanza (UNLaM).
Para Enrique Peruzzotti, diretor do Departamento de Ciência Política e de Estudos Internacionais da Universidad Torcuato Di Tella (em Buenos Aires), o fracasso da chapa cria um cenário inédito, pois o resultado provocou forte turbulência econômico e uma significativa perda de reputação para o governo no momento em que supostamente se inicia a campanha eleitoral. ;Isso impõe ao governo duplo desafio: responder às consequências econômicas que o resultado das PASO produziu e, ao mesmo tempo, tratar de recuperar os setores do eleitorado que expressaram sua repulsa. É uma tarefa difícil, pois o resultado piorou os índices econômicos e causou muito ruído político;, comentou. Segundo Peruzzotti, o êxito de Macri nas eleições de outubro dependerá da habilidade do governo e da responsabilidade da oposição.
Mal-estar social
Cientista político da Universidad Católica Argentina, Fernando Domínguez Sardou acredita que os 15 pontos de vantagem da ;Frente de Todos; são um claro sinal contra o governo Macri. ;Nesse sentido, as PASO nos brindaram com uma informação que as pesquisas não trouxeram: o mal-estar social para com a gestão do presidente era maior do que o analisado pela mídia e por especialistas. A falta de pesquisas críveis combinadas dificultou a análise dos cenários.; Ele prefere interpretar a vitória de Fernández e de Cristina não como uma adesão plena à fórmula política, mas como rejeição à gestão de Macri.
Uma frase sintetiza bem o resultado das PASO de domingo: ;O povo votou com a geladeira, não com o televisor;. Segundo Sardou, a grave crise econômica, combinada com o descumprimento das promessas à classe média (redução da inflação ou melhor em termos de emprego), foi atribuída a Macri pelo eleitorado. A recuperação do presidente depende, na opinião dele, de vários fatores: aumento da participação eleitoral; forte adesão dos novos eleitores; transferência de votos de terceiras forças (como os candidatos Roberto Lavagna, Juan José Gómez Centurión e José Luis Espert) para Macri; além da perda de eleitores por parte de Alberto Fernández. ;Tais fenômenos foram vistos em eleições anteriores, nunca antes combinados. Se acrescentarmos a isso o mal-estar econômico esperado após as reações do mercado, isso fica mais difícil. Ao mesmo tempo, os eleitores das terceiras forças dificilmente migram para o macrismo;, arrematou Sardou.
Dia sombrio na economia
O mercado argentino reagiu da pior forma possível ao fracasso de Mauricio Macri nas primárias. Foi uma segunda-feira sombria. O peso argentino derreteu ante o dólar, a bolsa recuou 34 pontos percentuais. O Banco Central argentino elevou a taxa de juros a 74% ano e preparou um leilão de US$ 50 milhões, em uma tentativa de conter a corrida cambial. Em Buenos Aires, o dólar abriu a 53 pesos, mas rapidamente alcançou os 60 pesos e fechou a 57,30 ; desvalorização de 18,76% em relação a sexta-feira. Casas de câmbio desligaram os letreiros e, em alguns momentos, os sites de bancos saíram do ar.
Para saber mais
Marca da justiça social
O passado está cada vez mais presente na política argentina. Juan Domingo Perón morreu há 45 anos, mas seu legado continua dominando o imaginário popular e a ideologia no país vizinho. O peronismo, movimento criado por Perón, prioriza a justiça social. Surgiu depois da Revolução de 1943, que culminou na derrocada da chamada ;Década Infame;. Em seu primeiro governo (1946-1952), Perón avançou a redistribuição de riquezas, forjou um Estado de bem-estar social, fortaleceu os sindicatos e, com a ajuda da mulher, Eva Perón, levou adiante uma ampla política de ajuda social. Na segunda gestão (1952-1955), Perón enfrentou um aumento da violência política e de dificuldades econômicas, o que levou a reduzir a participação dos trabalhadores na riqueza total. Em 16 de setembro de 1955, ele foi derrubado por um golpe militar.
Pontos de vista
Por Fernando Domínguez Sardou
Cenário
confuso
;As PASO reordenaram não apenas a competição, mas também a ação do governo. Como me parece difícil que o presidente Mauricio Macri consiga a reeleição em 27 de outubro, o governo se encontra em uma dupla encruzilhada: por um lado, tem de garantir uma transição política ordenada; por outro, precisa levar adiante uma série de decisões políticas fortes para responder à reação dos mercados ante a derrota nas primárias. Por sua vez, Alberto Fernández se veria na necessidade de moderar o próprio discurso e de se mostrar mais como presidente do que como candidato. O cenário é confuso e complexo.;
Cientista político e professor da Universidad Católica Argentina
Por Enrique Peruzzotti
Erosão do
governo
;Os resultados foram surpreendentes, principalmente pela diferença entre todos e os candidatos governistas. Isso causou forte impacto político, que se traduziu em intensa desvalorização do peso argentino e dos ativos. É óbvio que o resultrado indica forte erosão do apoio ao governo, inclusive nos distritos que lhe eram favoráveis, como Santa Fé e Córdoba. Ficaram de pé os bastiões da capital federal (Buenos Aires) e de Córboba. Ainda assim, esses distritos tiveram forte queda do apoio eleitoral. Esse fenômeno indica um voto de aberto rechaço ao governo.;
Diretor do Departamento de Ciência Política e de Estudos Internacionais da Universidad Torcuato Di Tella (em Buenos Aires)
Por Raúl Aragón
Governança
em xeque
;O significado da vitória contundente da chapa Alberto Fernández e Cristina Kirchner é o desgaste muito profundo do oficialismo. O impacto mais direto tem sido sobre o controle dos mercados, com o aumento do dólar e da taxa de juros. Isso provocou um início de corrida aos bancos. Trata-se de um fenômeno muito negativo para Macri, pois pode não apenas comprometer as chances de reeleição como a própria governabilidade. A política econômica da Casa Rosada beneficiou, basicamente, as companhias energéticas e o sistema financeiro. A maioria da população tem empobrecido.;
Diretor do Programa de Estudos de Opinião Pública na Universidad Nacional de La Matanza (UNLaM)