postado em 18/08/2019 04:11
Há quem diga que o modelo ;Um país (China), dois sistemas (capitalista e comunista); ruiu ou está próximo do colapso em Hong Kong. A ex-colônia britânica transformada em região semiautônoma da China continental e um dos maiores centros financeiros do planeta assiste a um levante popular que, segundo especialistas, atingiu um ponto sem retorno. Depois de ocuparem o aeroporto e forçarem uma ação violenta da polícia, centenas de milhares de manifestantes devem tomar as ruas da metrópole, hoje, para nova demonstração de força.
A 27km dali, na cidade chinesa de Shenzhen, blindados e tropas da China realizam manobras. A revolta que o Partido Comunista Chinês (PCC) teme se espalhar para o continente foi deflagrada pela decisão da chefe do Executivo de Hong Kong (HK), Carrie Lam, de propor projeto de lei que possibilitaria a extradição de cidadãos para Pequim. Apesar da suspensão do texto, o movimento não esmoreceu. Pelo contrário, expandiu as demandas: passou a exigir a renúncia de Lam, justiça, democracia e liberdades civis.
Para Antony Dapiran, advogado em Hong Kong e autor de City of Protest: A Recent History of Dissent in Hong Kong (;Cidade do protesto: Uma história recente de dissidência em Hong Kong;), os protestos têm semente na Revolução Guarda-Chuva, em 2014, a qual exigia que a população, e não Pequim, escolhesse o chefe do Executivo. ;Aquelas manifestações terminaram sem resolução, e questões subjacentes ; como a erosão das liberdades civis e demandas por mais democracia ; foram forjadas sob a superfície nos últimos cinco anos. A Lei sobre Extradição foi o gatilho que fez com que o descontentamento emergisse;, explicou ao Correio. Ele não crê em uma intervenção militar de Pequim por entender que isso significaria o fim de Hong Kong como centro financeiro. ;Seria um cenário economicamente desastroso para a China. As tropas na fronteira são um mero espetáculo, uma estratégia para tentar intimidar os manifestantes e voltada ao consumo doméstico na China.;
Dapiran não vê solução à vista para a crise, que coloca Hong Kong à beira da recessão. ;Nem Hong Kong nem Pequim têm o desejo de abordar preocupações políticas subjacentes. O ciclo de protestos e de repressão deve continuar.; Também parece sintomático o fato de Carrie Lam ter sido deixada à margem pela China. ;Porta-vozes de Pequim se tornaram mais ativos. Parece que o PCC busca tomar a dianteira para tentar pôr fim aos protestos e, depois, encontrar alguma solução diplomática à insatisfação em HK.;
Kong Tsung-gan, ativista em Hong Kong e autor de As long as there is resistance, there is hope (;Enquanto houver resistência, há esperança;), concorda com Dapiran e aponta que o PCC determinou que Carrie não faça concessões aos ativistas. ;O Partido Comunista Chinês usa a polícia de Hong Kong como cão de guarda e ferramenta política, pois se recusa a lidar com uma crise de governança e está determinado a aplicar a força e a propagadanda;, disse à reportagem. A marcha de hoje é organizada pela Frente Civil de Direitos Humanos (CHRF), que chegou a atrair 1,5 milhão de pessoas às ruas. ;Se a polícia proibir o protesto, isso será claro sinal de supressão do direito à liberdade de associação. Existe o medo real de que Hong Kong se torne Estado-polícia.;
Acordo
Pesquisador sobre política externa e de segurança da China na Universidade Macquarie (em Sydney, Austrália), Adam Ni aposta que a crise se agravará e considera improvável um acordo. ;Ante a agitação crescente e a mudança da natureza dos protestos ; da exigência de retirada da Lei sobre Extradição a um movimento em massa contra o governo, com ampla gama de demandas ;, alcançamos um ponto crítico. É um caminho sem retorno. A instabilidade se tornou norma. O núcleo da crise está no descompasso entre a iniciativa de Pequim de apertar o controle sobre Hong Kong e o povo e a determinação de HK de resistir a uma maior invasão de Pequim ao seu estilo de vida.;
Adam mostra ceticismo sobre uma invasão a Hong Kong. ;Há várias razões pelas quais seria estúpido para Pequim intervir em Hong Kong. O 70; aniversário da República Popular da China (1; de outubro) se aproxima. O presidente Xi Jinping quer marcar a data com um banho de sangue? O PCC quer mergulhar na questão de HK, apesar de desafios externos e internos complexos, como a guerra comercial com os EUA? Creio que não.;
Mobilizações antes da marcha
Milhares de manifestantes pró-democracia foram às ruas, ontem, em Hong Kong, e se dispersaram à tarde, armazenando energia para a concentração de hoje. Diversos partidários do governo também se concentraram ontem à tarde em um parque para criticar o movimento e apoiar a polícia, uma demonstração das crescentes divisões na cidade. A União Europeia (UE) pediu um ;amplo e abrangente diálogo; para ;acalmar a situação; em Hong Kong, considerando essencial ;mostrar moderação e rejeitar a violência;. Os Estados Unidos alertaram a China de que uma intervenção militar seria um ;grande erro;.
Pontos de vista
Por Antony Dapiran
Risco baixo de contágio
;Enquanto Pequim está sempre preocupada com qualquer instabilidade que possa ameaçar o governo chinês, não acho que o Partido Comunista Chinês (PCC) esteja seriamente aflito com o fato de que a situação de Hong Kong possa colocá-lo em risco. As autoridades da China continental detêm controle quase absoluto do fluxo de informações e são capazes de administrar rigidamente as mensagens disseminadas dentro da China. Agora, elas permitem que informações críticas de manifestantes de Hong Kong inundem as mídias sociais chinesas. A ação no aeroporto fez com que o sentimento popular na China se colocasse fortemente contrário aos ativistas de Hong Kong. Por isso, vejo pouco risco de ;contágio; dos protestos na China continental.;
Escritor e advogado baseado em Hong Kong, autor de City of protest: A recent history of dissent in Hong Kong (;Cidade do protesto: Uma história recente de dissidência em Hong Kong;)
Por Adam Ni
Um teste de paciência
;Os manifestantes testam a paciência de Pequim e desafiam sua autoridade. Para Pequim, isso é algo que não pode ser tolerado. A China continental já implementou uma estratégia multifacetada para enfrentar a crise em Hong Kong. Mas, Pequim precisa entender que nem todo o desafio à sua autoridade é fatal. E que, de fato, uma reação linha-dura provocará mais resistência, em um ciclo vicioso. Para detê-lo, é necessário amenizar a retórica. É claro que a China continental não quer ser vista como fraca, ao recuar, e como encorajadora da resistência. No entanto, tem de perceber que o caminho por ela seguido, ao adotar táticas agressivas, acabará saindo dos trilhos. Assim como antigas políticas, que conduziram ao levante. Se Pequim não deseja um problema de longo prazo com Hong Kong, necessita diminuir a escalada, em vez de espalhar a semente de conflitos no futuro.;
Analista sobre política externa e de segurança da China na Universidade Macquarie (Austrália)