postado em 19/08/2019 04:27
Depois de apenas 14 meses desde a formação do atual governo, a Itália pode estar às portas de uma eleição legislativa antecipada ou de um impasse político mais prolongado ; ambas as possibilidades resultantes da fragmentação partidária, que dificulta a composição de maioria no parlamento. Amanhã, o ministro do Interior e vice-premiê, Matteo Salvini, considerado o homem forte da atual coalizão, deve submeter um voto de desconfiança ao gabinete de coalizão do premiê Giuseppe Conte ; um independente.
Salvini, líder da Liga, de ultradireita, alega divergências com o parceiro, o Movimento Cinco Estrelas (M5S), legenda de protesto criada pelo comediante Beppe Grillo, que tem como líder parlamentar o também vice-premiê Luigi di Maio, titular da pasta do Desenvolvimento Econômico. À parte as diferenças reais, o chefe da Liga faz uma aposta pelo poder. Se o M5S elegeu a maior bancada em 2018, a ultradireita venceu as eleições europeias de maio e hoje lidera as pesquisas de opinião, com cerca de um terço das intenções de voto.
;Por que, então, não se demite?;, questionou uma terceira parte interessada na crise. O ex-premiê Matteo Renzi, do Partido Democrático (PD, centro-esquerda), joga com a possibilidade de unir-se a Di Maio no apoio a uma nova maioria, ou a um governo ;técnico; que evite a convocação imediata de eleições. Atento à disputa cada vez mais ácida entre os (ainda) parceiros de coalizão, bem como ao desconforto do premiê, Renzi reviu o veto assumido no ano passado e iniciou contatos com o M5S.
Embora Salvini tenha invocado inicialmente o veto ao projeto de uma autoestrada, a colisão frontal com Conte se deu em torno da imigração. O ministro do Interior desautorizou o premiê e vetou o acesso a um porto da Sicília de um navio da ONG espanhola Open Arms com 140 estrangeiros. Conte, que havia negociado com parceiros europeus, recorreu a uma carta aberta para condenar a ;deslealdade; do vice-premiê ; ;pela enésima vez, o que não posso aceitar;. Também criticou, com ironia, a ;obsessão de reduzir o tema da imigração à fórmula dos ;portos fechados;;.
O líder da Liga não economizou veneno na resposta, também pública, à ;cartinha; do premiê, e começou por desafiar ;o gentil presidente do Conselho (de Ministros); a ;dizer cara a cara; o que tinha escrito. ;Os italianos me pagam não para fazer o papel da boa alma, mas para defender as fronteiras e garantir a segurança ; essa é a minha obsessão;, prosseguiu Salvini.
No sábado, ele autorizou o desembarque de 27 menores de idade a bordo do navio humanitário, mas o possível recuo não parecia ter qualquer efeito possível na crise de gabinete. Luigi di Maio, o líder do M5S, já em tratativas com Matteo Renzi para um possível acordo com o PD, considerou tardios os acenos a uma recomposição. ;Agora, ele já quebrou os ovos. Cada um é artífice do próprio destino. Boa sorte;, afirmou.
Múltipla escolha
O líder direitista joga com a carta das eleições animado pelas férias de verão passadas na Sicília, onde foi assediado na praia para selfies com um público que deu vitória estrondosa para a Liga nas eleições europeias ; justamente pelo impacto sofrido na ilha com o desembarque de milhares de imigrantes. Mas a convocação antecipada dos italianos às urnas é apenas uma das opções para o presidente Sergio Mattarella, a quem o parlamentarismo italiano dá a primazia para resolver a crise.
O próprio premiê pode se antecipar ao voto de desconfiança e apresentar a demissão. Nesse caso, o chefe de Estado tem autoridade para convidá-lo a tentar recompor a maioria. Ainda que Conte seja derrubado, Mattarella assume as rédeas da situação. Antes de tomar uma decisão, tem a prerrogativa de consultar os líderes partidários para sondar as possibilidades de o parlamento eleger um novo gabinete. É um processo que pode se estender por algumas semanas.
O atual parlamento foi eleito com a expectativa de elaborar e aprovar uma reforma do sistema político-eleitoral capaz de sanar a instabilidade crônica no país. Em nome de cumprir essa missão, ou ao menos de garantir o orçamento para o próximo ano fiscal, o presidente pode ainda recorrer à formação de um governo ;técnico; encarregado de conduzir o processo até 2022. Apenas se nenhuma outra solução se mostrar viável restará ao chefe de Estado a saída de manter Conte à frente de um gabinete demissionário para tocar os assuntos cotidianos até uma nova eleição, mais provavelmente no fim de outubro.
"Foi um claro exemplo de deslealdade, pela enésima vez, o que não posso aceitar;
Giuseppe Conte, primeiro-ministro da Itália, em carta aberta ao ministro do Interior
"Muito me desagrada que o gentil presidente do Conselho traga certas coisas a público, em vez de dizê-las cara a cara;
Matteo Salvini, em resposta a Conte
Os quatro cavaleiros
Quais são as principais forças políticas italianas
A direita sem verniz
- A Liga, o partido antieuropeu e anti-imigração liderado por Matteo Salvini, é uma das estrelas de uma nova geração da direita europeia. Como as legendas afins da França e da Alemanha, elegeu a imigração como espantalho e a União Europeia como moinho de vento a ser combatido como se fosse um dragão. Com essa plataforma, saiu das urnas como a legenda mais votada no país, nas eleições europeias do fim de maio. Originalmente, era um movimento de tendência separatista, a Liga Norte, mas transitou para o campo da extrema direita populista ; com sucesso, até aqui. Na última eleição legislativa, superou o partido Força Itália, do ex-premiê Silvio Berlusconi, e firmou-se como o núcleo do campo conservador, mas distanciou-se das posições de centro com a profunda guinada anti-EU.
No começo era piada
- O Movimento Cinco Estrelas (M5S) foi criado pelo comediante Beppe Grillo (foto) como um protesto debochado contra o viciado sistema político italiano. O discurso contra a corrupção e os favorecimentos, contra os acordos de bastidores e a falta de coerência dos partidos estabelecidos foi propulsor de uma ascensão meteórica. Na última eleição legislativa, a legenda nascida como piada de protesto saiu das urnas com a maior bancada do parlamento ; e a primazia, segundo o sistema político italiano, para encabeçar o governo. Esbarrou na rejeição dos demais, até o momento em que encontrou um ponto de convergência com as aspirações do líder da Liga, Matteo Salvini. O acordo inédito de coalizão resultou em um governo improvável e algo errático, que caminha para o epílogo depois de 14 meses.
Herdeiros da esquerda
- Em meio à geleia geral da política partidária italiana, o Partido Democrático (PD), do ex-premiê Matteo Renzi (foto), se perfila como exceção, embora seja fruto de uma profunda metamorfose ideológica. A legenda é descendente do histórico Partido Comunista Italiano (PCI), o filho mais bem-sucedido de sua família política no mundo ocidental. Em meados dos anos 1980, sobreviveu sem maiores danos à Operação Mãos Limpas, que dizimou a Democracia Cristã e o Partido Socialista. Mas as ruínas do Muro de Berlim soterraram o velho PCI e deram caminho a uma formação de centro-esquerda que governou o país em diferentes períodos nas últimas três décadas. Atingido também pelo desgaste que fez do M5S uma das grandes forças do parlamento, o PD ensaia agora o rompimento com mais um tabu para retornar ao governo em coalizão com a legenda de protesto.
O show vai continuar
- Os últimos anos não pareciam ter sido tão generosos com Silvio Berlusconi (foto), magnata da mídia, dono do festejado time de futebol do Milan, personagem com o perfil clássico do populista capaz de empolgar um eleitorado fatigado com a política tradicional. Foi com esse repertório que o Cavaliere se lançou, na década de 1990, a ocupar o espaço aberto à direita pela implosão da Democracia Cristã. Se o nome de um partido diz algo sobre o conteúdo, a marca escolhida por Berlusconi ilustra a natureza de sua empreitada. Força Itália é o grito de guerra dos torcedores da Squadra Azzurra, a seleção de futebol. Premiê em duas ocasiões, o bilionário parecia fora do jogo após ser condenado por evasão fiscal e tráfico de influência, mas retornou nas eleições europeias. Agora, seu partido pode ser o fiel da balança na crise.
Alerta na Alemanha
Com aposentadoria política pré-marcada para o fim do mandato, em 2021, e com a popularidade em queda, a chanceler (chefe de governo) da Alemanha, Angela Merkel, deslocou-se ao estado de Brandenburgo, no qual Berlim está encravada, para reforçar a campanha da União Democrata Cristã (CDU) ao governo local. A duas semanas da eleição, no próximo dia 1;, as pesquisas mostram um cenário preocupante nessa região da ex-Alemanha Oriental comunista ; a mesma onde Merkel cresceu. Quem lidera as pesquisas de opinião é a Alternativa para a Alemanha (AfD), legenda de extrema direita e anti-imigração.
Merkel visitou com a sucessora designada na CDU, Annegret Kremp-Karrenbauer, a emblemática Ponte de Glienicke, usada durante a Guerra Fria para trocas de espiões entre os países ocidentais e o bloco socialista pró-soviético. Assim como o Partido Social Democrata (SPD), sócio na coalizão de governo federal, a chanceler procura reverter um quadro que projeta sombras em Berlim.
A última sondagem feita para a revista Der Spiegel mostra a AfD com 21% das intenções de voto, seguida pelo SPD (18,3%), que encabeça o atual governo de Brandenburgo e liderava as pesquisas até o fim de junho. Seu aliado local, a Esquerda, que incluí remanescentes do Partido Comunista da ex-Alemanha Oriental, aparecem com 14,8%. Para reeditar a parceria, precisariam ampliar a coalizão para incluir os Verdes (17,2%), praticamente empatados com a CDU (17%).
Os números sorriem para a extrema direita também na Saxônia, outro estado ex-oriental que terá eleições em 1; de setembro. Lá, no mês passado, a democracia cristã mantinha a tradicional liderança, com 29%, mas com a AfD em alta, marcando 25,4%. Mais dramático para Merkel, quem aparece em terceiro é a Esquerda (15%), descartada para uma eventual coalizão, seguida pelos Verdes (10,8%) e pelo SPD (8,7%).
Passados 30 anos da queda do Muro de Berlim, em novembro de 1989, que abriu caminho para o fim do bloco socialista e a reunificação da Alemanha, a ascensão da direita populista e anti-imigração na antiga metade oriental reflete o ressentimento da região com a disparidade econômica em relação à parte ocidental do país. Impulsionada em boa parte pelos votos do Leste, a AfD tornou-se em 2017 a terceira bancada do Bundestag (parlamento federal) e a maior da oposição ao governo de coalizão CDU-SPD. (SQ)