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EUA removem o prazo de reclusão de crianças

Casa Branca decide pôr fim a normativa que limitava em até 20 dias o tempo de reclusão de menores estrangeiros não documentados capturados na fronteira com o México. Ativistas e políticos condenam medida, prevista para começar a vigorar em 60 dias

Correio Braziliense
Correio Braziliense
postado em 22/08/2019 04:06
Calçados e brinquedos abandonados na passagem fronteiriça de Tornillo, no Texas, depois de crianças serem separadas dos pais ou responsáveis
A Casa Branca divulgou, ontem, uma nova regulamentação que substituirá o chamado Acordo Flores e colocará fim aos limites legais sobre o tempo de detenção de crianças imigrantes. A normativa, a ser implementada em dois meses, permitirá que as autoridades migratórias mantenham menores estrangeiros não documentados sob custódia por tempo indefinido. ;O Acordo Flores, que data de décadas, está defasado e não leva em conta a mudança em massa da imigração para famílias e menores da América Central;, afirmou o governo do presidente Donald Trump, por meio de um comunicado.

;Eu tenho as crianças muito em mente. Isso me incomoda imensamente. As pessoas fazem essa viagem horrível de 2 mil milhas (cerca de 3,2 mil quilômetros). (;) Quando perceberem que se entrarem nos Estados Unidos serão mandadas de volta para os seus países, elas não virão mais;, disse o republicano. Também ontem, Trump revelou que pensa ;seriamente; em eliminar o direito à nacionalidade por nascimento. A iniciativa vai contra a 14; emenda da Constituição americana, que estabelece que a cidadania é concedida a todos que nascem no país.

A medida em relação aos menores imigrantes atraiu fortes críticas de lideranças democratas, de especialistas e de organizações não governamentais. ;Trata-se de outro ataque cruel às crianças, as quais o governo tem mirado repetidas vezes com suas políticas anti-imigrantes. O governo não deveria estar detendo crianças, e certamente não deveria buscar colocar mais crianças na prisão por mais tempo. O Congresso não deve financiar isso;, disse Madhuri Grewal, conselheiro de política da União Americana pelas Liberdades Civis (Aclu, pela sigla em inglês).

Um dia depois de visitar um centro de detenção de imigrantes e abrigos na região de San Diego (Califórnia), e a caminho de novas inspeções no Texas, o brasileiro Paulo Abrão ; secretário executivo da Comissão Interamericana de Direitos Humanos da Organização dos Estados Americanos (OEA) ; classificou a nova regra de ;muito preocupante;. ;Qualquer tipo de detenção é prejudicial para a saúde mental e física das crianças e dos adolescentes;, ressaltou ao Correio. ;O governo não deveria utilizar a detenção de crianças como mecanismo para resolver normas e políticas migratórias frágeis. É um tipo cruel de violação aos direitos humanos das crianças.;


Justiça
Professor de Práticas de Leis de Imigração na Universidade de Cornell, Stephen W. Yale-Loehr admitiu à reportagem que Trump pensa seriamente em revogar o Acordo Flores. ;Ele acredita que o documento incentiva famílias a virem para os Estados Unidos. Trump lutará por isso vigorosamente na Corte. O presidente crê que, se as famílias de imigrantes perceberem que são detidas indefinidamente, menos pessoas tentarão entrar ilegalmente no país para solicitarem asilo;, comentou. ;Estou certo de que o juiz federal responsável por supervisionar o Acordo Flores derrubará os novos regulamentos. Depois, o governo Trump apelará ao Tribunal de Apelações do 9; Circuito e, potencialmente, à Suprema Corte.;

;Isso é algo absolutamente horrível. Devemos fazer tudo ao nosso alcance para fazer com que o governo Trump recue em suas políticas de imigração cruéis;, desabafou Tom Pérez, presidente do Comitê Nacional do Partido Democrata. ;Os demandantes de asilo e os imigrantes merecem ser tratados com um mínimo de dignidade humana e de decência, mas, mais uma vez, o governo Trump e seus aliados republicanos os estão demonizando para dividir o povo americano. Não há justificativa moral para a detenção indefinida de crianças;, afirmou, mais tarde.

Por meio do Twitter, Beto O;Rourke ; pré-candidato democrata à Casa Branca ; lembrou que sete crianças morreram enquanto estavam sob custódia dos EUA. ;Muitas mais dormem no chão de nossos centros de detenção, sob mantas de alumínio. Hoje, Trump decidiu que a solução é enjaulá-las por ainda mais tempo. Essa crueldade vai apenas piorar, se não for contida.;


Detenção limitada

O Acordo Flores foi estabelecido em 1997, depois de uma ação coletiva datada de 1985 que envolveu várias crianças migrantes. Ele limita a quantidade de tempo que o governo norte-americano pode deter uma criança a 20 dias ou menos. O documento também determina as diretrizes mínimas para as condições de segurança e sanitárias em instalações de detenção, exigindo das autoridades o atendimento das necessidades básicas das crianças, como comida, água e cuidados médicos.


Eu acho...

;Trump não enfrentará alto custo político por causa da detenção indefinida de crianças. Em caso de derrota na Corte, ele poderá alegar que tentou reparar o sistema de asilo danificado, mas que juízes liberais o impediram de fazê-lo. A mera publicidade sobre o novo regulamento pode coibir algumas famílias de virem para os EUA. Ele considerá tal cenário uma vitória.;


Stephen W. Yale-Loehr, professor de Práticas de Leis de Imigração na Universidade de Cornell


Depoime

;Nós soubemos
de graves abusos;


;Fomos a albergues onde estão famílias separadas. Ontem (terça-feira), visitamos o muro (na fronteira com o México) e o centro de detenção de migrantes Otay Mesa, em San Diego (Califórnia). O que se vive é uma criminalização do direito humano de migrar. Os centros de detenção estão equiparando o tratamento aos imigrantes com o de criminosos comuns.

Os padrões internacionais não são cumpridos, tampouco o devido processo para a solicitação de asilo é respeitado. Nós recebemos muitas denúncias de graves abusos. Estamos preparando um informe para ser apresentado ao Conselho Permanente da Organização dos Estados Americanos (OEA). No centro de detenção Otay Mesa, não vimos crianças detidas, apenas adultos. Encontranos menores nos albergues que apoiam as pessoas liberadas da detenção.

Entrevistei um brasileiro de 18 anos, vindo do Maranhão. Ele viajou para os EUA fugindo de perseguição de membros jovens do PCC com que teve o azar de brigar numa festa. Ele se sentiu ameaçado e fugiu do país. Foi para o México. De lá um ;coiote; se ofereceu para ajudá-lo a cruzar a fronteira por Tijuana e cobrou muito caro. O coiote dizia que, depois de passar para o outro lado, um carro viria buscá-lo. O carro nunca chegou, e a a polícia de controle da fronteira o prendeu. Esse jovem está há três meses no centro de detenção em San Diego. Antes, esteve preso na fronteira, passou 12 dias sem banho e sem alimentação adequada.

Entrevistei outro mexicano que vivia havia 20 anos nos Estados Unidos. Ele é pai de um bebê nascido nos EUA com graves problemas de saúde. Apesar de ser o provedor da família, foi detido para deportação. Está desesperado, porque a mulher e o filho não têm como viver sem ele.;



Paulo Abrão, secretário executivo da Comissão Interamericana de Direitos Humanos da Organização dos Estados Americanos (OEA)

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