postado em 28/08/2019 04:06
No último sábado, a Ucrânia completou 28 anos de independência imersa em uma guerra provocada pela anexação da Península da Crimeia. Em 18 de março de 2014, a Crimeia e a cidade de Sebastopol foram incorporadas à Federação Russa. Forças militares e paramilitares aliadas a Moscou passaram a ocupar o leste do país. Desde então, os combates deixaram mais de 13 mil mortos e 30 mil feridos, e forçaram a expulsão de 1,8 milhão de pessoas de suas casas. "Essa guerra não é nossa, não foi começada por nós", afirmou Rostyslav Tronenko, embaixador da Ucrânia no Brasil, posto ocupado desde abril de 2012. Em entrevista exclusiva ao Correio, o diplomata de 57 anos acusou o presidente russo, Vladimir Putin, de se engajar numa política expansionista e imperialista, com o objetivo de retornar à era da União Soviética. "O problema desse senhor é que ele não propõe nem democracia nem prosperidade para os ucranianos. Ele quer nos fazer voltar nos tempos soviéticos e nos obrigar a apoiar suas aventuras na Venezuela e na Síria. Os ucranianos estão fartos disso", comentou. Tronenko admitiu que a agressão ao seu país continua e denunciou que Moscou não cumpriu com os compromissos firmados nos Acordos de Minsk, pacto para pôr fim à ocupação. O embaixador ucraniano agradeceu ao governo brasileiro por ter sido o primeiro a apoiar publicamente a integridade territorial, a soberania e a independência da Ucrânia, em 25 de janeiro passado. O Correio entrou em contato com a Embaixada da Rússia em Brasília para repercutir as declarações de Tronenko, mas não obteve resposta até o fechamento desta edição. O diplomata não esconde otimismo em relação ao futuro do seu país e explica que o humorista e agora presidente Volodymyr Zelenskyy planeja encampar uma série de reformas sistêmicas e combater a corrupção.
Cinco anos depois da anexação da Crimeia, como a Ucrânia vê a política da Rússia? Moscou segue sendo uma ameaça ao seu país?
Sim, continua sendo. A cada dia temos perdas civis e militares, feridos ou mortos, por causa dessa agressão. Além do termo "expansionista;, eu adicionaria, ainda, "política imperialista". Infelizmente, trata-se de uma ameaça não apenas para a Ucrânia e os ucranianos. Desde os anos 1950, houve a intervenção da União Soviética em Budapeste, em Praga e no Afeganistão. Depois da ocupação ilegal da República Autônoma da Crimeia e de Sebastopol, tivemos uma agressão no leste da Ucrânia, nas províncias da região de Donbass. É triste que um membro permanente e um dos fundadores das Nações Unidas, e uma potência nuclear, se comporte de jeito aventureiro e imprevisível. Desde o fim da Segunda Guerra Mundial, um membro permanente do Conselho de Segurança da ONU ; com responsabilidade adicional, segundo o Estatuto da ONU para a Preservação da Paz e a Solução Pacífica dos Conflitos ; vem tentando mudar as fronteiras na Europa. O centro geográfico da Europa encontra-se na Ucrânia ocidental. Com armas nucleares e com o perigo de um golpe atômico, ele chantageia não só a Europa, mas o mundo inteiro. Depois da Ucrânia, houve as intervenções russas na Síria e na Venezuela.
O leste da Ucrânia está pacificado?
Infelizmente, não. A agressão continua e, nestes cinco anos, a Rússia nada fez para cumprir com os Acordos de Minsk. Em primeiro lugar, os acordos de setembro de 2014 e em fevereiro de 2015, os quais foram apoiados pela decisão do Conselho de Segurança da ONU. Segundo esses acordos, a Rússia, como país agressor, deve retirar todos os seus grupos militares e paramilitares, apoiados financeiramente com armas; e entregar o controle de 409km de nossa fronteira comum ao governo da Ucrânia. Além disso, todos os grupos militares e paramilitares devem ser desarmados. Quando essas condições forem cumpridas, estaremos dispostos a sediar eleições nesses territórios, como previsto pelos Acordos de Minsk, com a presença de observadores internacionais, de partidos e da mídia ucraniana. Em maio de 2014 e em outubro do mesmo ano, tivemos eleições parlamentares. Em 2019, realizamos eleições presidenciais e parlamentares. Apesar de toda essa situação grave, o que nos orgulha é que as últimas eleições foram reconhecidas como democráticas, transparentes e justas. Infelizmente, as pessoas nos territórios ocupados da Crimeia e do leste da Ucrânia ficam reféns das autoridades da ocupação e não conseguiram votar. Por isso, em vez de 450 deputados no parlamento, foram eleitos 424 ; 26 seriam de Sebastopol, na República Autônoma da Crimeia.
Quais foram as sequelas provocadas pela guerra?
Segundo os dados da ONU, mais de 13 mil pessoas foram assassinadas, 30 mil ficaram gravemente feridas e 1,8 milhão ficaram como refugiadas dentro da Ucrânia e se viram obrigadas a abandonar as suas vidas, por causa da agressão e da ocupação. É um peso adicional ao orçamento do Estado, pois ele tem de encontrar moradias para essas pessoas e famílias, além de emprego. Inclusive, continuar a pagar aposentadorias para as pessoas que estão nos territórios temporariamente ocupados de Donbass e da Crimeia. Segundo o direito internacional, a administração da ocupação deve assegurar os direitos dessas pessoas. Mas, elas perdem tanto os direitos humanos quanto o de minorias étnicas ; como os tártaros da Crimeia. Acreditamos que, um dia, esses territórios serão devolvidos e o direito internacional prevalecerá.
Como a comunidade internacional deve reagir para garantir a soberania da Ucrânia?
A comunidade internacional reagiu. Em março de 2014, foi aprovada uma resolução da Assembleia Geral da ONU, aprovada por 100 membros, que se chama "Integridade territorial da Ucrânia". Foram introduzidas sanções econômicas e financeiras pelos países da União Europeia e do G7. A Federação Russa foi expulsa do G8. Quem paga o preço da ocupação e da agressão política é a própria população da Federação Russa. O nível de vida piorou significativamente nos últimos cinco anos, ante todo esse apoio que o governo russo está dando à República Popular de Donetsk e à República Popular de Luhansk, autoproclamadas repúblicas, em completa violação da Constituição da Ucrânia. O apoio financeiro e político, o fornecimento de armas e o aval das Forças Amadas da Rússia a essas autoproclamadas repúblicas ; que, segundo o Parlamento da Ucrânia, são grupos terroristas ; vem do orçamento da Federação Russa. Se alguém está construindo a ponte que une o território da Federação Russa ao da Crimeia ocupada, é a própria população russa.
O presidente francês, Emmanuel Macron, anunciou uma cúpula de paz sobre a Ucrânia para o próximo mês. O que espera disso?
Essa guerra começou não por meio da Ucrânia. Além da política de agressão imperialista russa, não havia nenhum motivo para ocupar a Crimeia ou províncias de Donbass. Sou do leste da Ucrânia, falo duas línguas, mas, como cidadão da Ucrânia, não preciso que alguém defenda os meus direitos dentro do meu próprio país. A iniciativa do presidente Macron é bem-vinda, porque trata de novos encontros no formato da Normandia. Ninguém, além do senhor Putin, pode parar essa agressão e terminar a ocupação. Mesmo com novo presidente e com novo parlamento, não vemos nenhuma vontade da parte dele. Por isso, qualquer apoio da comunidade internacional, dos presidentes e chanceleres europeus, é bem-vindo. Para deter o senhor Putin, basta apoiar a Ucrânia. Infelizmente, as chaves da guerra estão com Putin. Este é o problema.
E quem é Putin para o senhor?
É melhor perguntar ao meu colega russo. Eu respondi a essa pergunta no programa Roda Viva, em 2014. Putin que acha que a maior tragédia do século passado não foi a Primeira, nem a Segunda Guerra Mundial, não foram os genocídios de Holodomor (Ucrânia, entre 1932 e 1933), do Holocausto, do Camboja ou da África, mas a dissolução da União Soviética. Isso fala bastante sobre essa pessoa. O problema desse senhor é que ele nada propõe de novo. Ele propõe, como cantavam os Beatles, é a USSR, a volta para o passado, para a União Soviética. Os 69 anos da experiência soviética foram mais do que suficientes. Com a Segunda Guerra, quando a Ucrânia ficou entre Adolf Hilter e Josef Stalin; com (o desastre nuclear de) Chernobyl; com (o holocausto de) Holodomor... Ele não propõe nem democracia nem prosperidade para os ucranianos. Ele quer nos fazer voltar aos tempos soviéticos e nos obrigar a apoiar suas aventuras na Venezuela e na Síria. Os ucranianos estão fartos disso.
Um dos objetivos do presidente Volodymyr Zelenskyy é implementar reformas. Quais as mais urgentes?
Ele é uma pessoa bastante jovem, tem 41 anos. Foi ator, apresentador de shows e, em 2017, criou o próprio partido, o Servo do Povo. Nosso presidente veio com a onda do desejo da paz. A guerra não é nossa, não foi começada por nós. Em vez do chamado "mundo russo", as populações das regiões ocupadas receberam destruição, sofrimento e guerra. Quanto a Zelenskyy, ele foi bem decisivo em seu primeiro discurso no parlamento, ao pedir a dissolução do próprio e convocar eleições antecipadas. O presidente não deixou esperar outubro, data inicial do pleito, e antecipou as eleições parlamentares, ganhando maioria confortável, com 254 assentos. Isso lhe permitirá reformas ambiciosas em várias áreas. No campo da segurança, a reforma das Forças Armadas para levá-las ao nível das exigências da Organização do Tratado do Atlântico Norte (Otan). No setor da economia, reformas para aprofundar a cooperação com a União Europeia. Ele continuará com a reforma do Judiciário. Também prometeu combater a corrupção, com o Tribunal Especial Anticorrupção. Também creio em reformas na área energética.
Como analisa as relações bilaterais entre Brasília e Kiev?
São ótimas. O atual governo brasileiro foi o primeiro a apoiar publicamente a integridade territorial, a soberania e a independência da Ucrânia, em Davos, em 25 de janeiro. No Brasil, há mais de 1 milhão de brasileiros de origem ucraniana, de quinta e sexta gerações, dos últimos 128 anos. Eles estão muito atentos à postura do atual governo. Neste ano, marcamos 10 anos de parceria estratégica entre Brasil e Ucrânia. O Brasil sempre foi o nosso parceiro número um na América Latina. Estamos muito gratos aos brasileiros.
;O problema desse senhor (Putin) é que ele não propõe nem democracia nem prosperidade para os ucranianos.
Ele quer nos fazer voltar aos tempos soviéticos e nos obrigar a apoiar suas aventuras na Venezuela e na Síria;
Rostyslav Tronenko, embaixador da Ucrânia no Brasil